“O pior mal é a discrepância entre a taxa de câmbio paralela e a oficial”
Economista critica a política restritiva monetária do BNA que, segundo diz, não serve nem para combater a inflação, tão-pouco as altas taxas de juros e censura igualmente a política fiscal de austeridade. Em entrevista ao VE, José Cerqueira fala do livro da sua autoria, sobre a economia nacional, que prevê lançar ainda esta semana, em Luanda, onde também defende a reformulação das contas nacionais que “têm estado a ser mal elaboradas”.
O livro “A Nova Economia Angolana” que prevê lançar ainda esta semana é uma abordagem à crise que assola actualmente o país?
O livro aborda duas vertentes da economia nacional. A principal visa analisar os aspectos da economia nacional na actual conjuntura para indicar algumas vias de difícil superação em que nos encontramos. Num outro ângulo, indico os fundamentos teóricos que levam a esta análise. Entretanto, o aspecto principal é a economia angolana e aí começo logo com um ponto de ordem que, no fundo, é dizer que a economia angolana sofreu uma recessão profunda desde 2014. Ou seja, o valor da produção baixou e o rendimento e o poder de compra da população também baixaram, o que contraria a narrativa dominante que diz que a economia não teve recessão ou então que a economia continuou a crescer, mas devagarinho. O que se passa é que os métodos de contabilidade nacional em uso estão muito ultrapassados. E é em função disso que se diz que a economia está a crescer. O preço do petróleo baixou enormemente, mas, como a quantidade física produzida não baixou, acha-se que se produz o mesmo valor, quando não! Quando baixa o rendimento, baixa o poder de compra e assiste-se a uma redução no número de emprego e são interrompidas construções de edifícios, enfim, estamos diante de uma recessão. No nosso caso, foi uma recessão terrível e tremenda. É necessário, a nosso ver, rever isso, porque, quando não identificamos um problema, significa que não estamos na boa via para resolvê-lo. E isso implica que se revejam os métodos de contabilidade nacional.
Quer dizer então que as contas nacionais têm sido mal elaboradas?
Sim, senhor! A contabilidade nacional não deu conta da recessão. E a recessão foi tremenda. Não é possível que o poder de compra da população tenha baixado e o valor da produção não. Isto é impossível. São duas faces da mesma moeda. E, portanto, o facto de a contabilidade nacional não ter detectado esse fenómeno é prova, em minha modesta opinião, que a contabilidade nacional carece de uma grande reforma, de uma grande revisão para modernizá-la de tal maneira que ela dê uma fotografia correcta e lúcida da realidade.
Essa obra que vai agora lançar apresenta alguma solução específica para este problema que apresenta, relacionado com a elaboração da contabilidade nacional?
É fazermos uma contabilidade nacional focada essencialmente nos fluxos monetários de rendimento como, por exemplo, no rendimento monetário da população. E também que essa contabilidade nacional se baseie muito em amostragens e não nos métodos que têm sido apresentados hoje, cuja metodologia é até desconhecida. Ou seja, nunca foi publicado qual é o método de contabilidade nacional que se usa. É um bocado no segredo dos deuses. Portanto, penso ter sido por incapacidade, a contabilidade nacional não ter detectado um fenómeno que até a população a olho nus dá conta que o seu poder de compra baixou, depois do choque petrolífero.
Essa nova obra já traz a perspectiva do cenário económico nacional tendo em conta o processo de transição política que está agora a ocorrer no país?
Eu não me meto muito em questões políticas. Agora, o que digo é que é preciso uma grande reviravolta na política económica angolana. Estamos muito submetidos ainda às visões do FMI, da Europa, enfim, que nos condicionam a políticas que impendem o crescimento económico. Isto é terrível para África. No continente africano, particularmente em Angola, temos um crescimento populacional muito elevado. A taxa de crescimento demográfico está na ordem dos 3% em Angola. Para isso, precisamos de crescer muito, do ponto de vista económico. Ou seja, ter uma taxa de crescimento de sete, oito ou até 9% durante os próximos 10 anos. Mas, para isso, tem de haver emprego. Nós temos um desemprego terrível, mas a experiência dos outros países mostrou que, quando há políticas que favorecem o crescimento económico, a economia tende a proporcionar emprego em períodos de menos de 10 anos. Essa é a grande transformação que temos de efectuar, nos próximos 10 anos, e isso implica que haja um sentimento de independência mental da parte dos dirigentes africanos, no sentido de se encontrar em políticas económicas que estejam mais de acordo com as introspecções dos problemas africanos, baseados na observação do que se passou nos países que hoje são desenvolvidos e virar as costas às políticas que principalmente os europeus, mas também o FMI e o próprio Banco Mundial, nos têm vindo a impingir nos últimos 30 anos e cujos efeitos não vimos.
Em África, a corrupção, entretanto, tem sido um dos males que enfermam o desenvolvimento económico dos países. No caso particular de Angola, o novo Governo, liderado por João Lourenço, promete combater o fenómeno. Acha que o novo elenco governativo terá capacidade para tal?
Não vai ser fácil, mas não vai ser impossível. É preciso que o Governo, em primeiro lugar, se liberte de ter uma influência e uma actuação muito grande na economia e preencha aquilo que é essencial que são a saúde, educação, os tribunais, a diplomacia, o exército e a segurança pública e deixe o resto para a iniciativa privada. E é preciso também pagar convenientemente a classe política. Muitas coisas que hoje passam por baixo da mesa podem ser passadas por cima da mesa. Por exemplo, nos casos em que há uma grande compra pública, o vencedor do concurso já sabe que tem de pagar cinco ou 10% para apoiar os funcionários públicos. Isso pode passar por cima da mesa e depois ser repartido de acordo com as regras. Claro que o ministro ou o director, eventualmente, receberão uma maior porção, mas tudo isso pode ser feito de forma transparente. Por outro lado, temos de ter uma função pública que queira fazer carreira e que saiba que ser funcionário público é algo meritório, com concurso. Quem quiser ser rico que fique na iniciativa privada. Portanto, é necessária essa revolução cultural!
Quais deverão ser os grandes efeitos dessa renovação. Essa transição na liderança política nacional, que declara combater a corrupção, traz mais confiança ou não aos investidores?
A classe política deve ter força para exercer as suas políticas. Ou seja, tem de haver uma neutralidade absoluta quanto à classe privada e essa neutralidade da classe política é essencial para preservar um clima de concorrência. Quando a corrupção está vincada nesses processos, a tendência é favorecer os amigos e isso cria uma classe de empresários privados desconfiada que não corre muitos riscos e que tenta, com o dinheiro que ganha, pôr logo lá fora ou aí onde os negócios sejam mais transparentes. Temos de mudar isso em África, criando um clima de concorrência e do mérito ao investimento e à iniciativa privada.
Que prioridades o novo Governo deveria, desde já, elencar na sua agenda de trabalho?
Normalizar a balança de pagamentos do país é muito importante; uma taxa de câmbio flutuante, flexível e não uma taxa de câmbio fixa. O pior mal que temos hoje na economia é a discrepância entre a taxa de câmbio paralela e a oficial que permite o enriquecimento de pessoas oportunistas que estão a beneficiar-se da situação. É preciso voltarmos a unificar as taxas de câmbio e, para isso, temos de criar uma taxa de câmbio mais flexível. Por outro lado, temos de criar condições para que a taxa de juros baixe substancialmente e possa, desse modo, garantir crédito ao consumidor, que é essencial para suscitar o investimento. E temos ainda de defender a propriedade. Imagine que você tem um apartamento e que, por qualquer circunstância, está fechado. Entretanto, há um indivíduo que invade o seu apartamento e você não tem meios de o tirar de lá. Tem de ir ao tribunal que pode tomar um a dois anos a resolver o assunto.Como é que você quer que haja investimento imobiliário numa situação dessa? Por isso é que defendo que se deve proteger a propriedade. A concessão de terrenos não pode ser feita como tem sido realizado. Ou seja, atribuir um número de hectares a uma pessoa que não tem capacidade para investir. Uma concessão de terreno devia ser inicialmente provisória e dar, por exemplo, seis meses para se tornar definitivo e para isso a pessoa deveria vedar a sua propriedade. Portanto, isso tem de ser tudo regularizado, as pessoas devem saber com o que contam e os papéis que o Governo emite devem ser credíveis e devem transmitir confiança às pessoas. O capitalismo, quando funciona dentro de normas bem definidas – e isso só vermos o que se passou nos países capitalistas desenvolvidos - protege tanto a propriedade privada como os trabalhadores. Temos de criar um capitalismo angolano, no qual a classe trabalhadora se sinta contente. Falo bastante disso no meu livro.
Falemos um pouco sobre a política monetária adoptada pelo BNA. Como é que encara um cenário de desvalorização do kwanza?
Na minha opinião, numa fase inicial, o kwanza desvalorizaria, sem dúvidas! E, segundo os cálculos que fiz, a taxa de câmbio encontraria um equilíbrio quando um dólar comprasse à volta de 280 kwanzas. Portanto, ia atingir um equilíbrio e as taxas de câmbio unificariam. Depois de encontrar o equilíbrio, a tendência era para revalorizar a nossa moeda. Porque um país muito atrasado economicamente tem uma possibilidade de crescimento maior do que um país já desenvolvido e a taxa de câmbio reflecte um bocado a produtividade. Ou seja, se a taxa de produtividade aumentar, a nossa moeda tende a valorizar. Quando se quer ter uma moeda fixa, o resultado daí proveniente é diferente, porque, em primeiro lugar, surgem duas taxas de câmbio, a oficial e a do paralelo. A experiência mostra que os países com taxas de câmbio flutuante têm mais estabilidade cambial que os países com taxa de câmbio fixa.
E que avaliação faz sobre a política restritiva do Banco Central. Será a mais adequada numa altura em que se coloca a necessidade de se alavancar os investimentos?
A política restritiva vem sendo aplicada desde os anos 90 praticamente. Não deu efeito nenhum! Claro que não devemos considerar o período da guerra. Devemos olhar para as coisas depois de 2002, com o alcance da paz. Mas, depois de 2004, já se passaram quantos anos? Mais de 10 anos e, portanto, já podíamos ter resultados. A verdade é que essa política restritiva não conseguiu combater a inflação, não conseguiu combater a taxa de juro alta e eu diria que a política monetária restritiva é perversa. Ela actua para reprimir os excessos de emissão bancária e do crédito dos bancos que causam inflação quando a função principal dela deveria ser prevenir estes acontecimentos. É como o chefe que manda prender no fim da tarde os ladrões e que deixa sair da cadeia de manhã. Isso é um bocado o que se passa com a política monetária restritiva. Ela devia ter regras para impedir que os bancos de depósitos tivessem este excesso de negócio que provoca a inflação.
A inflação mantém-se acima da meta do Governo. Ainda é possível a meta dos 15?
Devemos deixar a economia funcionar normalmente sem uma repressão da inflação como a que existe. Vamos deixar que a moeda circule normalmente para depois termos uma política monetária estabilizada. O que existe é que temos vindo a reprimir a inflação e nunca chegámos à estabilidade monetária. Se calhar, devíamos deixar que a inflação suba e chegue, por exemplo, a 50% ou mais, mas de tal maneira que só aconteça durante umas semanas ou uns meses até a moeda encontrar um equilíbrio para que, depois disso, os preços evoluam a 1 % ou 2 % ao ano, que é o normal numa economia capitalista. Da mesma maneira que temos de passar por uma fase de depreciação cambial, temos de passar por uma fase de inflação.
Diante da actual conjuntura, que apreciação faz sobre o papel da banca perante o empresariado e as famílias?
As taxas de juro são muito elevadas, o crédito restrito. Portanto, era preciso mudar, era preciso haver mais crédito e taxas de juros mais baixas. Mas o principal problema é que os bancos têm liberdade a mais no nosso país. As pessoas puseram lá os seus dólares e depois quando querem não há. Significa que eles utilizaram em benefício próprio. Os dólares não desaparecem. Em segundo lugar, muitos bancos, senão todos, estão com crédito malparado. Financiou-se muito o investimento, com depósitos da população, sem que se tenha pedido autorização. Isso não pode funcionar assim. Aliás, isso só funciona assim em países que o sistema bancário tem liberdade a mais. Você vai aos Estados Unidos, à África do Sul, o banco não pode emprestar o seu depósito para investimento sem a sua autorização. Tem de se criar uma separação entre bancos de depósitos e bancos de investimento. Os bancos de depósitos não devem ser autorizados a fazer aplicações em investimentos a longo prazo. Só os bancos de investimentos e estes só poderão fazer isso com a autorização das pessoas que lhes emprestam os depósitos.
Em relação à tributação, a AGT tem adoptado uma postura algo ‘agressiva’ na a cobrança de impostos, com muita contestação por parte, sobretudo, do empresariado.
Temos de acabar com a austeridade. E como se faz isso? Há várias maneiras, mas a principal é dizer que o dinheiro dos impostos deve ser tido a 100% para financiar despesas correntes como os salários dos funcionários ou as matérias-primas que o Governo utiliza. O investimento público, porém, deve ser financiado a 100% com recurso ao mercado financeiro, para que o dinheiro dos impostos possa ser todo aplicado nas despesas correntes. Portanto, temos de criar estas condições, e isso não é algo demorado. É uma questão de semanas ou meses se calhar, para que o investimento público seja financiado com recurso aos mercados financeiros, como se faz nos países capitalistas desenvolvidos. Por outro lado, penso que a actuação da AGT não é muito positiva, ao andar atrás dos empresários a cobrar impostos. Não estou a dizer que são maus funcionários, até porque eles obedecem a ordens. Mas temos de aliviar a carga fiscal e tentar todos os anos baixar os impostos. As taxas de impostos em Angola arruínam o empresariado, arruínam a população e os põe ainda mais pobres. Entretanto, os empresários que pagam os impostos têm de ajudar o Governo para que haja mais gente a pagar mais impostos. À medida que as pessoas vão pagando impostos, as taxas baixam. O Governo não está preocupado com mais gente a pagar impostos para ter mais receitas, não é isso! É para criar um clima de igualdade. África tem de ser um continente de impostos baixos, porque a população é pobre e nessa condição não pode pagar muitos impostos. Portanto, de forma, eu diria o salazarismo, inconscientemente, persiste ainda na mente de alguns economistas influentes no nosso país. O que era o salazarismo nesse domínio? Era carregar os impostos para que fossem mais elevados.
Acha que o paradigma da diversificação tem de ser repensado?
É um processo que não é rápido, vai demorar. As questões fundamentais, a este nível, tem que ver primeiro com a industrialização. E como se faz isso? Têm de existir as condições básicas. Ou seja, tem de haver o fornecimento de água potável, electricidade. Tem de ser feito um grande esforço a este nível, mas não temos vindo a aproveitar adequadamente os nossos recursos energéticos. Angola tem gás, tem petróleo e logo tem de produzir mais electricidade com recurso ao gás e ao petróleo e não ter a ideia que toda a electricidade vem das barragens. Temos de ter também uma excelente escola de engenheiros de tal maneira que sejam os jovens com aptidão que possam lá ir, sejam pobres ou ricos e não termos um sistema em que você para estudar tem de pagar, mesmo que seja um brilhante estudante. O objectivo está bem apontado, mas o Governo deve ser o maestro e não o actor. A iniciativa privada tem de fazer as suas escolhas.
PERFIL
José Cerqueira nasceu em 1954, em Caculo Cabaça, Kwanza-Norte. Em Dezembro de 1960, passou a viver em Portugal, onde frequentou a escolaridade primária e secundária. Foi igualmente em Portugal onde concluiu a sua licenciatura em Economia, pela Faculdade de Economia do Porto, em 1976, ano em que passa a residir em Luanda.
Em 1981, obtém uma bolsa de estudo que lhe permite obter o mestrado na Universidade de Bourgogne (França). Em 1987 torna-se, durante um ano, o principal economista do primeiro programa angolano de reformas económicas, o SEF (Programa de Saneamento Económico). Em 1992 retoma investigações científicas que lhe permitem obter em 1994 o título de Doutor de Estado (Docteur d’État), na Universidade de Bourgogne, obtendo a menção mais alta praticada em universidades francesas.
Em 2015, foi nomeado vice-governador de Luanda, para a área económica, cargo que exerce actualmente.
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