Os países africanos não precisam de temer o incumprimento

13 Jan. 2021 Opinião
D.R

Desde o início da crise provocada pela covid-19, o espectro do incumprimento soberano paira sobre as economias em desenvolvimento. Muitos países têm tanto medo de perder o acesso aos mercados que não estão dispostos a resolver os problemas de sustentabilidade da dívida. No entanto, uma visão clara do impacto da crise da covid-19, juntamente com as realidades fiscais e financeiras para os países de baixo rendimento, revela uma 'nova normalidade', na qual um incumprimento atempado está longe de ser o pior cenário.

De acordo com as estimativas do Banco Mundial, metade dos países mais pobres do mundo já está ou corre o risco de estar em sobreendividamento. Na África Subsariana, por exemplo, os indicadores de solvência deterioraram-se significativamente este ano, após seis anos de enfraquecimento gradual associado à queda dos preços mundiais dos produtos. Angola, Gana e Nigéria gastam quase metade das suas receitas governamentais no pagamento de juros. Para os 19 países da África Subsariana incluídos na avaliação, a S&P Global Ratings estima que dois terços de todos os pagamentos de juros vão para credores privados.

Enquanto isso, o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a crise da covid-19 acabará com uma década de progresso na redução da pobreza, com efeitos duradouros que impeçam significativamente as perspectivas de desenvolvimento dos países de baixo rendimento. Só do ponto de vista humanitário, isto já deveria ser inaceitável e ainda mais à luz da sustentabilidade e das metas de desenvolvimento a longo prazo.

Não há dúvida de que os credores tomaram algumas medidas para aliviar o fardo da dívida das economias em desenvolvimento. No âmbito da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) do G20, os países mais pobres do mundo, principalmente em África, podem solicitar um adiamento dos pagamentos de dívidas bilaterais. Os países do G20 também chegaram a um acordo sobre um quadro comum para a reestruturação da dívida pública.

Mas há barreiras significativas que impedem o progresso. Para começar, muitos países em desenvolvimento temem que as agências de classificação os declarem em incumprimento se reestruturarem os seus débitos obrigacionistas, fazendo com que percam o acesso aos mercados por um período prolongado. Mas, embora as agências de notação classifiquem, de facto, uma reestruturação como um incumprimento, as preocupações com a perda de acesso aos mercados são exageradas.

Para começar, os países mais pobres já perderam o acesso aos mercados de capitais em Março. Devem agora concentrar-se em recuperar o acesso aos mercados de forma sustentável.

Na verdade, à medida que a procura de rendimento por parte dos investidores se foi tornando cada vez mais desesperada, estes países ganharam uma alavancagem. Durante a crise da dívida latino-americana da década de 1980, os rendimentos do Tesouro dos EUA a dez anos estavam acima de 10%. Mesmo no auge da crise financeira global de 2007-09, os títulos do Tesouro a dez anos rendiam perto de 4%. Actualmente, os rendimentos caíram abaixo de 1%. Globalmente, os títulos de rendimento negativo ultrapassam os 18 biliões de dólares.

Neste contexto, os investidores simplesmente não se podem dar ao luxo de amuar durante muito tempo por causa de um país em situação de incumprimento, se isso significar renunciar a rendimentos atractivos. E, de facto, a descida nas taxas de juro globais foi acompanhada por uma redução observável com o tempo necessário para que um país recupere o acesso aos mercados após o incumprimento. A Argentina emitiu um título a 100 anos em 2017 – um ano após emergir do incumprimento. Os títulos a dez anos da Grécia rendem menos de 0,7%. Isso não é coincidência.

Além disso, para um mutuário à beira da insolvência, a reestruturação da dívida aumenta a credibilidade. À medida que o excesso de alavancagem é eliminado, o potencial de crescimento e desenvolvimento melhora. Isso deveria tornar os países de África e de outras regiões elegíveis para a DSSI novamente destinos de investimento atractivos.

Embora reestruturar os títulos africanos fosse uma bênção para os devedores, pouco prejudicaria os credores, ao contrário, digamos, da crise da dívida da década de 1980. Naquela época, um incumprimento unilateral antecipado por parte de países com mercados emergentes poderia ter tornado alguns dos maiores bancos dos EUA insolventes, o que significava que os credores tinham um forte interesse em jogar duro e em ganhar tempo.

Hoje não. A dívida detida pelos países elegíveis para a DSSI equivale apenas a uma parcela insignificante das carteiras dos investidores institucionais. Para a indústria de investimento em geral, o impacto será trivial. Dada a ausência de trauma, os investidores ficarão muito menos relutantes em regressar aos mercados quando o preço for o correcto.

Desta vez, é realmente diferente. A situação financeira em que muitos países pobres se encontram hoje é o resultado não de políticas imprudentes e empréstimos excessivos, mas de um grande choque repentino. Os investidores estão bem cientes de que o incumprimento nas condições actuais não é, de forma alguma, sinal de que outro incumprimento seja provável. O estigma de incumprimento simplesmente não vai durar.

Existe mais um potencial obstáculo ao progresso: a relutância dos credores privados. Na verdade, alguns deles estão a fazer tudo o que podem para alimentar os receios de incumprimento dos devedores soberanos. Mas a verdade é que as negociações de reestruturação são quase inevitáveis e tanto os credores privados como os oficiais têm de participar. (Ao contrário das crises anteriores da dívida africana, os obrigacionistas são agora uma parte importante da equação da dívida em muitos países).

Essas conversações devem ser iniciadas o mais rápido possível. A experiência anterior com a reestruturação da dívida soberana mostrou que os atrasos levam a crises mais profundas nos países devedores, maiores cortes financeiros para os credores e uma exclusão mais prolongada dos mercados de capitais.

Felizmente, a maturidade das obrigações africanas será excepcionalmente baixa em 2021. Isso oferece um cenário perfeito para as negociações de alívio necessárias e complexas de vários credores. Em nome das respectivas sociedades sofredoras, os líderes africanos têm de aproveitar essa oportunidade, uma vez que têm todas as cartas na mão.

No entanto, para que a prática valha a pena, os governos devedores precisam de se comprometer com credibilidade a direccionar os fluxos privados futuros de forma a promover o desenvolvimento social e económico, inoculando-se assim contra choques e contratempos futuros. O alívio da dívida e uma recuperação sustentável têm de ser as duas faces da mesma moeda. Para África, essa moeda comprará a derradeira recompensa: um futuro mais próspero e resiliente.