Como podemos tributar as multinacionais indisciplinadas?

18 Feb. 2019 Opinião

Nos últimos anos, a globalização tem sido alvo de ataques renovados. Algumas das críticas podem ser deslocadas, mas uma delas é certeira: a globalização permitiu que grandes multinacionais, como a Apple, a Google e a Starbucks, evitassem o pagamento de impostos. A Apple tornou-se no exemplo da evasão aos impostos sobre as sociedades, com a sua pretensão jurídica de que algumas centenas de pessoas que trabalham na Irlanda são a verdadeira origem dos seus lucros e com a posterior celebração de um acordo com o governo desse país que resultou no pagamento de impostos que ascendem a 0,005% dos seus lucros.

A Apple, a Google, a Starbucks e empresas congéneres afirmam ser socialmente responsáveis, mas o primeiro elemento da responsabilidade social deveria ser o pagamento da sua quota-parte de impostos. Se todas as pessoas evitassem e fugissem de pagar impostos como estas empresas, a sociedade não poderia funcionar, e muito menos realizar os investimentos públicos que levaram à Internet, da qual dependem a Apple e a Google.

Durante anos, as corporações multinacionais encorajaram uma corrida para o fundo, dizendo a cada país que deveria baixar os seus impostos para valores inferiores aos dos seus concorrentes. O corte fiscal de 2017 do presidente dos EUA, Donald Trump, foi o culminar dessa corrida. Um ano depois, podemos ver os resultados: o impulso momentâneo que trouxe à economia dos EUA está a desaparecer rapidamente, deixando para trás uma enorme dívida (a dívida dos EUA ultrapassou a marca de um bilião de dólares no ano passado).

Estimulada pela ameaça de que a economia digital privará os governos dos rendimentos necessários para o seu funcionamento (além de afastar a economia dos modos tradicionais de venda), a comunidade internacional está finalmente a reconhecer que algo está errado. Mas as falhas no modelo actual da tributação de multinacionais, que se baseia nos denominados preços de transferência, há muito que são conhecidas.

Os preços de transferência baseiam-se no princípio geralmente aceite de que os impostos devem reflectir o local onde ocorre a actividade económica. Mas como se determina esse local? Numa economia globalizada, os produtos movem-se repetidamente através das fronteiras e normalmente num estado inacabado: uma camisa sem botões, um carro sem caixa de velocidades, um disco sem ‘chip’. O sistema dos preços de transferência assume que conseguimos definir valores a preços de mercado para cada fase da produção e, desse modo, avaliar o valor acrescentado num determinado país. Mas não conseguimos.

A importância crescente da propriedade intelectual e de outros elementos incorpóreos piora ainda mais a questão, porque as declarações de titularidade podem ser facilmente movimentadas pelo mundo. É por isso que os EUA, há muito, abandonaram a utilização do sistema de preços de transferência dentro dos EUA, a favor de uma fórmula que atribui os lucros totais das empresas a cada Estado na proporção da parte das vendas, do emprego e do capital nesse local. Precisamos de evoluir para um sistema análogo a nível global.

O modo como isso é feito, porém, faz toda a diferença. Se a fórmula se basear principalmente nas vendas finais, que acontecem de forma desproporcionada nos países desenvolvidos, os países em desenvolvimento serão privados de receitas muito necessárias, cuja falta será cada vez mais sentida, à medida que as restrições fiscais diminuírem os fluxos da ajuda financeira. As vendas finais podem ser adequadas para a tributação das transacções digitais, mas não para a indústria e outros sectores, onde é também vital incluir o emprego.

Algumas pessoas receiam que a inclusão do emprego possa agravar a concorrência fiscal, com os governos a tentarem encorajar as multinacionais a criarem empregos nas suas jurisdições. A resposta adequada a esta preocupação consiste na imposição de um imposto mínimo global sobre o rendimento das sociedades. Os EUA e a União Europeia poderiam – e deveriam – fazer isto. Se o fizessem, outros seguiriam o seu exemplo, evitando uma corrida em que só as multinacionais ganham.

Desde a sua criação, o Projecto de Erosão da Base Tributária e de Transferência de Lucros da OCDE/G20 contribuiu de forma importante para o repensar da tributação das multinacionais, ao desenvolver o entendimento de algumas das questões fundamentais. Por exemplo, se existe um verdadeiro valor nas multinacionais, é que o todo é maior que a soma das partes. Os princípios fiscais de referência da simplicidade, eficiência e equidade deveriam orientar a nossa reflexão na distribuição do ‘valor residual’, tal como defende a Comissão Independente para a Reforma da Fiscalidade Corporativa Internacional (da qual sou membro). Mas estes princípios são inconsistentes, tanto com a manutenção do sistema de preços de transferência, como com o cálculo dos impostos principalmente a partir das vendas.

A política tem importância: o objectivo das multinacionais consiste na recolha de apoios para reformas que continuem a corrida para o fundo e na manutenção de oportunidades para a evasão fiscal. Os governos de alguns países avançados, onde estas empresas têm influência política significativa, apoiarão estes esforços – mesmo que isso crie desvantagens para o resto do país. Outros países avançados, preocupados com os próprios orçamentos, olharão para isto simplesmente como mais uma oportunidade para se beneficiarem à custa dos países em desenvolvimento.

A iniciativa da OCDE/G20 descreve os seus esforços como proporcionadores de um ‘Modelo Inclusivo’. Esse modelo deverá ser orientado por princípios e não apenas pela política. Se o objectivo é a inclusão genuína, a prioridade principal deve ser o bem-estar dos mais de seis mil milhões de pessoas que vivem nos países em desenvolvimento e em mercados emergentes.

Prémio Nobel da Economia, professor na Universidade de Columbia, Economista-Chefe do Instituto Roosevelt