Réus do ‘caso 500 milhões’ defendem-se no Tribunal Supremo

Ex-director do BNA coloca ‘em xeque’ acusação do Ministério Público

17 Dec. 2019 Valor Económico De Jure

JULGAMENTO. António Manuel declarou ter visto o memorando em que José Eduardo dos Santos orientava o ex-governador do BNA a assinar contratos e a concretizar a transferência dos 500 milhões de dólares. E refutou a tese da acusação de que Valter Filipe usurpou competências do conselho de administração do BNA. 

               

Ex-director do BNA coloca ‘em xeque’ acusação do Ministério Público
D.R

A audição ao réu António Samalia Bule Manuel, pronunciado nos crimes de peculato e branqueamento de capitais, no processo da alegada transferência ilegal de 500 milhões de dólares do BNA para o Reino Unido, ficou marcada por vários esclarecimentos que, na opinião de alguns observadores, fragilizam a acusação do Ministério Público.

Nas duas sessões dos dias 12 e 16 de Dezembro, em que foi questionado pelos três juízes que conduzem o julgamento, pelo Ministério Público e pelos advogados da defesa, o ex-director do departamento de gestão de reservas do BNA afirmou que, ao contrário do que atesta a acusação, o ex-governador do BNA, Valter Filipe, tinha competências para autorizar a transferência dos 500 milhões de dólares, “no âmbito da política de investimento” do banco central. António Manuel referiu que, na distribuição de pelouros do conselho de administração do BNA, competia ao governador a gestão do departamento de gestão de reservas, daí que tenha sido de Valter Filipe de quem recebeu as instruções da operação de transferência que, entretanto, foi realizada pelo departamento de operações bancárias. Ante a insistência dos juízes e do Ministério Público sobre eventuais irregularidades cometidas no processo de transferência, António Manuel assegurou que o departamento que dirigia cumpriu cabalmente todos os procedimentos aplicáveis, antes de remeter o processo ao departamento de operações bancárias. Explicação que, para um jurista que acompanha as sessões de julgamento no Tribunal Supremo, coloca a discussão no plano de cumprimento de regulamentos internos e não na esfera de eventuais ilegalidades. “Pelo que vejo aqui, não se está a discutir matérias de natureza criminal, mas antes de cumprimento de regulamentos. Ora, mesmo que, em última hipótese, houvesse incumprimento de procedimentos, jamais deveria ser levantada a questão criminal. Há muito desconhecimento aqui [no Tribunal] sobre várias matérias, incluindo de direito administrativo”, observa o académico, sob anonimato.           

Respondendo sobre as autorizações que Valter Filipe teria recebido de José Eduardo dos Santos, António Samalia Bule Manuel assegurou ter visto um memorando assinado pelo ex-Presidente da República, em que o ex-governador recebia instruções para prosseguir com o processo, incluindo a assinatura dos contratos e a concretização da transferência do montante total de 1,5 mil milhões de dólares, o que seria feito em três tranches. “Os valores voltariam, entretanto, ao BNA sem qualquer ónus para o Estado”, precisou o réu, socorrendo-se dos termos do contrato de gestão de reservas. 

“Garantia não era condição absoluta”

Questionado pelos juízes sobre o facto de a transferência dos 500 milhões de dólares ter sido realizada sem a apresentação prévia de uma garantia pelos promotores, António Manuel explicou que o contrato de gestão de activos, assinado entre o BNA e o consórcio integrado pela Mais Financial e a Resource, não determinava a emissão prévia de uma garantia. Mas acrescentou que as cláusulas do contrato estavam em conformidade com as práticas internacionais. “Neste tipo de contratos, as garantias não são condição absoluta. Às vezes há, outras vezes não. Depende de muitas variáveis”, comentou o ex-director do departamento de gestão de reservas do BNA. António Manuel explicou também que os 500 milhões de dólares nunca estiveram fora da esfera patrimonial do BNA, sendo que estavam alocados apenas a um gestor externo, nos termos de um mandato, conferido através do contrato, à semelhança do que acontece com os demais gestores externos das reservas do BNA. 

Ao esclarecer a necessidade da transferência dos 500 milhões de dólares, antes da criação do fundo de investimento estratégico, conforme contratualizado, António Manuel explicou que isso ocorreu pela natureza do instrumento que se pretendia erguer. “Para a criação de um fundo de investimento, este fundo tem de ser antes capitalizado, só assim é que estará apto para a captação de recursos. Sem capitalização não há fundo”, sublinhou. 

Nas explicações técnicas do réu, a colocação dos 500 milhões de dólares na conta bancária da Perfect Bit, a empresa fiduciária, é “uma prática corrente”, na medida em que os fundos não podem estar sob custódia directa dos promotores do fundo de investimento, “por razões de segurança, credibilidade e transparência”.  

“O Estado não teve prejuízos, mas sim o réu”       

Ouvido na sessão de 10 de Dezembro, o empresário Jorge Sebastião, pronunciado nos crimes de burla por defraudação, branqueamento de capitais e tráfico de influência, explicou que os 24.850.000 euros transferidos para a conta da Mais Financial em Portugal não se destinavam para seu benefício próprio, como acusa o Ministério Público. Mas antes para a realização de um conjunto de pagamentos relacionados com o processo de criação do fundo de investimento estratégico, conforme o contrato de assistência técnica e financeira, assinado com o BNA. Jorge Sebastião lembrou que alguns pagamentos foram antecipados aos fornecedores, com recursos próprios, antes de a Mais Financial receber os valores do BNA, justificando o seu envolvimento na iniciativa “pelo interesse do Estado”.

Interrogado sobre o retorno dos valores às contas do BNA, uma vez que as suas contas bancárias se encontravam bloqueadas em Portugal, o empresário declarou que teve de fazer recurso ao seu património pessoal. “Uma vez que a finalidade do contrato não chegou a concretizar-se, entendemos de imediato que os valores tinham de retornar ao BNA”, precisou, apontando, entretanto, o incumprimento por parte do Estado de um acordo negociado em Londres. “Os representantes do Estado tinham-se comprometido em garantir o desbloqueio da conta em Portugal, para facilitar o retorno dos valores, mas não o fizeram. A conta continua bloqueada até hoje, ainda assim retornámos os valores, porque havia prazos a cumprir e porque os valores pertenciam ao BNA”, precisou. Segundo o empresário, além dos 24.850.000 de dólares, entregou também ao Estado 2.000.000 de euros, correspondentes aos custos judiciais do processo arbitral aberto em Londres pelo Estado, totalizando 26.850.000 euros, além dos 500 milhões de dólares restituídos pela Perfect Bit.   “Na verdade, o Estado não teve prejuízos, mas sim eu que estou na condição de réu”, observou Sebastião.

 “João Lourenço tinha conhecimento”

O advogado do ex-governador do BNA, pronunciado nos crimes de peculato e branqueamento de capitais, declarou que o actual Presidente da República “teve conhecimento” do dossier relacionado com a criação do fundo estratégico do Estado, antes de chegar ao poder. Sérgio Raimundo lembrou que a reunião de Setembro de 2017 entre José Eduardo dos Santos e as diversas partes integrantes da iniciativa contou com a presença do actual ministro de Estado e da Coordenação Económica, Manuel Nunes Júnior, que, na altura, respondia pelas questões económicas do bureau político do MPLA. João Lourenço só não estaria presente por razões de agenda e Manuel Nunes Júnior, segundo o advogado, participou na qualidade de futuro responsável pela equipa económica do Governo saído das eleições de 2017. “O processo não foi montando às escondidas”, sublinhou Sérgio Raimundo, revelando que José Eduardo dos Santos teria preterido outra proposta de captação de fundos apresentada pelo então vice-presidente da República, Manuel Domingos Vicente.   

 “Tribunal Supremo é incompetente” 

Na sessão desta segunda-feira, 16 de Dezembro, o advogado do ex-presidente do conselho de administração do Fundo Soberano de Angola colocou um recurso, em que declara o Tribunal Supremo como incompetente para julgar a matéria. António Gentil Simão mencionou várias normas da legislação angolana, além da adesão de Angola à ‘convenção sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras’, para questionar a legitimidade do Supremo. Para o advogado de José Filomeno dos Santos, o contrato de gestão de reservas, que suportou a transferência dos 500 milhões de dólares, “estabelece claramente” a arbitragem internacional como o fórum para a resolução de eventuais conflitos decorrentes da sua execução. E uma vez que já houve uma sentença arbitral internacional “o Tribunal Supremo não deveria pronunciar-se sobre os conflitos decorrentes desse contrato. É incompetente”, reafirmou Gentil Simão.

José Filomeno dos Santos, por sua vez, que também responde pelos crimes de burla por defraudação, tráfico de influência e branqueamento de capitais,  assegurou, na audição do dia 11 de Dezembro, que a sua intervenção no processo foi determinada pelo então chefe do Executivo, pela sua experiência em gestão de fundos, mas aclarou que o Fundo Soberano de Angola não teve qualquer papel operacional ou institucional no processo. Filomeno dos Santos negou que a parte angolana se tenha envolvido em qualquer operação para lesar o Estado e criticou o facto de a justiça angolana ter ignorado a participação na Procuradoria-Geral da República contra a parte estrangeira, nomeadamente os prófugos Hugo Onderwater e Samuel Barbosa, assim com as respectivas empresas.