Reestruturar o processo de reestruturação da dívida

02 Dec. 2020 Opinião

O incumprimento da dívida soberana é muito comum. O Equador e a Venezuela já incumpriram dez vezes cada um entre 1800 e 2010 e a Grécia entrou em incumprimento cinco vezes, entre a guerra pela independência (de 1821 a 1830) até 1932. A Rússia, a Ucrânia, o Equador, o Uruguai e a Argentina entraram todos em incumprimento desde 1998.

Já houve tempos em que se usavam os canhões para resolver o incumprimento das dívidas. Por exemplo, depois de a Venezuela ter entrado em incumprimento em 1902, os seus portos foram cercados e bombardeados por potências europeias. Mas estes métodos foram substituídos por reestruturações confusas e frequentemente diferidas da dívida soberana, que provocam dificuldades económicas tanto aos devedores como aos credores. Poucos observadores duvidam que o método actual possa ser imensamente melhorado.

Num passado mais recente, contratos deficientemente concebidos criaram uma abertura para as chamadas 'empresas-abutre' se aproveitarem dos devedores através dos processos de reestruturação. Estas empresas adquiriam as dívidas em situação crítica a preços de saldo, impediam o seu reescalonamento e iam para tribunal a exigir o pleno reembolso, auferindo lucros fantásticos se vencessem a causa.

Num exemplo notável, em 1983, o Peru emitiu dívida, reestruturada em 1996 como 'obrigações Brady' denominadas em dólares. Por ter adquirido uma parte da anterior dívida de 1983, o fundo de investimento especulativo dos EUA, Elliott Management, suspendeu a reestruturação e convenceu os tribunais em Nova Iorque e em Bruxelas de que uma cláusula padronizada 'pari passu' (paridade), no contrato de dívida, significava que o Peru deveria reembolsar a dívida mais antiga nos mesmos termos que as obrigações Brady. Para evitar um novo incumprimento, o Peru foi forçado a pagar ao Elliott o valor integral das suas obrigações incumpridas, acrescido de juros.

Num outro episódio, a Argentina emitiu uma dívida em 1998 que se venceu em 2005, altura em que entrou em incumprimento e foi reprogramada. Na esperança de conservar o acesso aos mercados internacionais de capitais, o país procedeu aos seus pagamentos agendados para a dívida renovada. Mas a NML Capital (uma filial do Elliott) reteve a reprogramação e persuadiu um juiz a sentenciar que, a menos que a Argentina reembolsasse integralmente a NML, não poderia reembolsar mais ninguém. Incapaz de fazer isso, a Argentina voltou a incumprir em 2014.

Considere-se agora a situação de um país hipotético que se tenha endividado na década de 1990, tenha passado por um mau bocado, e não tenha sido capaz de reembolsar a sua dívida já vencida. Os credores oficiais mostraram disponibilidade para lhe conceder empréstimos, mas deixaram bastante claro que os seus empréstimos não poderiam ser usados para pagar a credores anteriores. O país teria de reestruturar a sua dívida, mas o acordo unânime entre os credores era impossível; houve resistências, algumas inadvertidas, mas uma das quais poderia ter sido originada pelo Elliott.

O que é que este país poderia fazer? Se os restantes credores suspeitassem que os resistentes poderiam ser pagos, não seria possível celebrar qualquer acordo; mas se os resistentes não fossem pagos, o país poderia sofrer o mesmo destino que o Peru ou a Argentina. Definitivamente, tudo isto poderia ser evitado se os contratos de dívida soberana contivessem cláusulas de acção colectiva (CAC) mais robustas, que facilitassem as negociações de reestruturação através da vinculação de todos os credores a uma votação por maioria qualificada, evitando desse modo que os resistentes levassem o devedor a tribunal.

Em 2014, no seguimento dos episódios acima descritos, a Associação Internacional de Mercados de Capitais (representante de vários interesses) publicou modelos de contratos com CAC que permitem a reestruturação com base numa única votação e que clarificam a cláusula 'pari passu' para evitar os problemas enfrentados pelo Peru e pela Argentina. A intenção da AIMC consistia em resolver o problema dos resistentes e a sua melhor opção consistiu numa abordagem de membro único, que permite a resolução de várias emissões de dívida com uma única votação por maioria absoluta. Na altura, os governos devedores, o Fundo Monetário Internacional e os credores acataram esta inovação, tornando-a no padrão para novas emissões soberanas (e para todas as emissões soberanas na UE depois de 2022).

Mas os ‘fundos-abutre’ não são os únicos que conseguem ler cuidadosamente os contratos. Durante as negociações para a reestruturação da dívida que ocorreram este ano, a Argentina usou as novas letras miúdas para encetar uma 'estratégia Pac-Man' (assim chamada em homenagem ao clássico jogo de vídeo, onde o herói do mesmo nome apanha pontos um a um). Enquanto devedor com várias emissões que não conseguia assegurar uma maioria absoluta para um resultado favorável à sua dívida de uma só vez, a Argentina começou por chegar a acordo com os credores que ofereciam termos mais favoráveis. Só depois de fazer isso é que propôs uma votação a todos os credores, melhorando ligeiramente as condições para os credores já acordados e reforçando dessa forma as suas probabilidades de garantir uma maioria absoluta para a totalidade das suas emissões.

Em alternativa, depois da primeira votação, o devedor redefine uma parte suficiente das emissões como não pertencendo à primeira votação para conseguir uma maioria absoluta relativamente às restantes. Chega a acordo com os detentores dessas emissões, oferece-lhes condições ligeiramente melhores e organiza uma nova votação com todas as emissões.

Como poderão estes artifícios ser evitados futuramente? Mesmo que fortaleçamos o enquadramento contratual, os contratos de dívida permanecerão sempre incompletos, com escapatórias que devedores e credores astutos vão encontrar e explorar. Logo, a resolução da dívida soberana exige uma intervenção oficial, na forma de um Mecanismo de Reestruturação de Dívida Soberana (MRDS), um órgão independente que suspenderia pagamentos enquanto ocorressem procedimentos judiciais, que protegeria os devedores de sanções dos credores e que permitiria a obtenção de novos financiamentos por parte dos governos. Também teria de proteger os interesses dos credores, excluindo métodos como as estratégias 'Pac-Man' ou de redefinição. Finalmente, ainda teria de existir um qualquer mecanismo que vinculasse todos os credores assim que uma maioria qualificada de credores aceitasse uma proposta, como a AIMC tentou fazer com as suas minutas de CAC.

Em última análise, não existe uma opção simples entre as regras e a discricionariedade. Precisamos simultaneamente de regras robustas e do recurso final à discricionariedade de um MRDS, que poderia ser gerido pelo FMI, pelo Banco de Pagamentos Internacionais ou por alguma entidade nova criada especificamente para esse efeito. É hora de ultrapassarmos os canhões de uma vez por todas.

 

Willem H. Buiter, 

Professor convidado de Políticas Públicas Internacionais na Universidade de Columbia

 

Anne Sibert,

Professora de Economia, Universidade de Londres