Francis Mangeni

Francis Mangeni

A política comercial ‘América primeiro’, do presidente norte-americano Donald Trump, desencadeou um proteccionismo global que poderá precipitar o colapso do sistema internacional de comércio. Neste cenário de crescente tensão, que envolvem EUA, China, União Europeia e outras grandes economias, África parece estar passiva. Mas as aparências enganam.

A 21 de Março, 44 países africanos deram um grande passo em direcção ao estabelecimento de um vasto mercado único que promete fortalecer todas as economias do continente. Com a Área de Livre Comércio Continental Africano (CFTA), os líderes africanos sinalizaram um compromisso com a modernização dentro do sistema internacional de comércio baseado em regras do pós-guerra.

Alguns analistas foram rápidos a comentar a CFTA, usando a velha narrativa sobre a África, com argumentos banais: infra-estrutura inadequada, baixos níveis de industrialização, histórico deficiente do continente de implementar acordos anteriores, alto custo de fazer negócios e corrupção endémica.

Certamente não ajuda que a Nigéria e a África do Sul - as duas maiores economias do continente - ainda não tenham ingressado na CFTA. Mas, pelo menos, os presidentes nigeriano Muhammadu Buhari e o sul-africano Cyril Ramaphosa não se apressaram, como Trump, a condenar o acordo antes de o conhecer.

Outros especialistas realçam o potencial da CFTA nos esforços para desenvolver a infra-estrutura, promover a industrialização e melhorar o ambiente de negócios. Independentemente de onde se esteja na CFTA, é bem-vinda uma discussão sobre o papel do comércio intra-africano - uma estratégia de desenvolvimento crucial, mas, muitas vezes, negligenciada.

A CFTA pode ser mais bem descrita como um componente necessário, mas insuficiente, da agenda de desenvolvimento. África precisa de programas continentais, regionais e nacionais mais robustos para melhorar a infra-estrutura e impulsionar o desenvolvimento industrial, agrícola e tecnológico, conforme previsto nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para 2030. Com ou sem a CFTA, os países africanos devem expandir a tecnologia, modernizar e simplificar os procedimentos alfandegários e implementar medidas para facilitar o comércio.

Há uma necessidade clara de haver uma área de comércio pan-africana. A corrupção, bloqueios de estradas e as taxas e atrasos nas fronteiras respondem por 90% dos custos totais de transporte no continente, enquanto o frete e seguro respondem por apenas 1%. Além disso, África é dividida por muitas economias nacionais, a maioria das quais abriga empresas menores, pouco sofisticadas. O nível de desenvolvimento tecnológico está aquém do de muitas outras regiões e sofre com a escassez de crédito. Uma quantidade significativa de comércio intra-regional não é registada, devido ao peso do sector informal.

Tudo isso ajuda a explicar porque o comércio intra-africano, como parcela do comércio total do continente em 2016, foi de apenas 21,2%. A participação correspondente na União Europeia é de 61,7%. Entre os membros do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, a parcela é de 50,3%, e é de 24,3% dentro da Associação das Nações do Sudeste Asiático.

O desafio fundamental é garantir que a CFTA realmente se concretize. A criação de um regime comercial que funcione bem, em tantos países, requer tacto, previsão e boa gestão. Em Julho, os chefes de Estado africanos deverão estabelecer os termos para o comércio de bens e serviços.

Os anexos devem cobrir desde regras de origem até à cooperação alfandegária, a facilitação do comércio, barreiras não-tarifárias, padrões técnicos e de saúde, medidas comerciais e cronogramas de concessões tarifárias.

Além das regras comerciais, as autoridades também precisam de negociar a abertura de serviços nacionais e os detalhes de um mercado de serviços integrados. Espera-se que essas conversações produzam marcos reguladores e cronogramas para os países cumprirem com compromissos específicos. Isto é crucial, porque áreas como transportes, logística, turismo, comunicação, energia, finanças e serviços ‘business-to-business’ respondem, em média, por mais da metade da produção nacional dos países africanos.

Outra questão importante diz respeito às tarifas sobre mercadorias. A CFTA determina a liberalização de tarifas em 90% de 600 produtos para um período de cinco a 10 anos. Cada país ou união aduaneira deverá produzir um cronograma de concessões tarifárias que demonstrem o cumprimento da liberalização. Os cronogramas negociados para os serviços e as concessões tarifárias devem ser apresentados até à Cimeira da União Africana, marcada para Janeiro de 2019.

Vão ser necessárias intervenções políticas de alto nível. Os líderes nacionais devem ordenar os seus ministros a intervir quando necessário para resolver questões difíceis. Especialistas, técnicos e formuladores de políticas devem manter o foco na análise das implicações dos produtos excluídos e sensíveis para o comércio intra-regional e as cadeias de valor para que governos e indústrias possam adaptar-se adequadamente.

Outra prioridade é persuadir 22 países a ratificar o acordo para que possa entrar em vigor antes do final de 2018. Uma prioridade final, de alto nível, é dar início à segunda fase das negociações, que se concentram em investimentos, concorrência e propriedade intelectual. Os negociadores precisam de se basear nas comunidades económicas regionais, ao mesmo tempo em que utilizam as melhores práticas de todo o mundo. Por exemplo, as regiões COMESA e EAC já têm regimes e instituições funcionais de política de concorrência, que podem servir como modelos para a CFTA. AÁfrica do Sul já tem directrizes de investidores que reflectem as metas de desenvolvimento e sustentabilidade do continente.

Além disso, o método africano de designar certos chefes de Estado para defender programas continentais específicos provou ser altamente eficaz na mobilização de vontade política. O presidente ruandês, Paul Kagame, liderou os esforços para reformar a UA e o presidente do Níger, Mahamadou Issoufou, conduziu o projecto CFTA desde o início.

A agenda de livre comércio da África começou em 2018 com optimismo. Mas o tempo pressiona e os formuladores de políticas precisam de manter o ímpeto se quiserem cumprir prazos. Embora questões estruturais permaneçam altas na agenda de desenvolvimento, a prioridade imediata é terminar o trabalho básico inacabado necessário para colocar a CFTA em funcionamento. Isso exige pensamento rápido, compromisso e determinação por parte de todos os signatários.

Assegurar a ratificação de cada estado membro exige uma pressão suave sobre os governos. As negociações da segunda fase podem ser aceleradas recorrendo a modelos globais, regionais e nacionais que já se mostraram eficazes.

Se tudo isso acontecer, África dará um passo gigantesco para alcançar a integração económica continental. E, nesse caso, o continente será tudo menos um espectador na economia global. Existe, portanto, um forte imperativo para transformar o ideal da CFTA numa realidade.

Director de Comércio, Alfândegas e Assuntos Monetários no Mercado Comum da África Oriental e Austral.

Enquanto os líderes africanos criam a maior área de Comércio Livre Continental (CFTA), a 21 de Março de 2018, numa reunião em Kigali, no Ruanda, pensam também que a principal prioridade deve ser como evitar lançar algo oco ou redundante. O CFTA - um dos 12 programas emblemáticos no âmbito da Agenda 2063 da União Africana (UA) - poderá duplicar o comércio intra-africano e trazer enormes benefícios para o continente. Mas depende muito da forma como será redigido o texto final. Um sinal positivo é que a CFTA vai incluir o comércio de serviços, que já contribui, em média, com mais de 50% do PIB dos países africanos.

Um número crescente de pesquisas sugere que os serviços providenciam novas vias de desenvolvimento social e económico em África. No seu mais recente livro ‘The Unerxplored Potential of Trade in Services in Africa’, Nora Dihel e Arti Grover Goswani, através dos dados do Banco Mundial, mostram que os serviços têm o potencial de fornecer muitos empregos e rendimentos necessários para a generalidade das pessoas em todo o continente.

As indústrias de serviços, tais como as comunicações, transportes, bancos, seguros, energia, educação e saúde, são os principais impulsionadores do desenvolvimento, enquanto o turismo e a construção têm actualmente um alto potencial de crescimento. Além disso, para muitos jovens profissionais, os serviços são o único meio de ganhar a vida. E com o surgimento de universidades empresariais - onde os trabalhos de cursos e as dissertações produzem profissionais de negócios e não apenas graus académicos - os mercados vibrantes de serviços tornar-se-ão mais necessários do que nunca.

Mas Dihel e Goswani também alertam sobre os “obstáculos regulamentares”. Os decisores políticos africanos precisam de ir além do quadro inicial que já foi acordado no âmbito da CFTA para identificar os sectores que podem ser levados para um mercado de serviços mais abrangente e integrado. E deve seguir um quadro abrangente para estabelecer os termos e condições de comércio e investimento em sectores específicos e como atrair investimentos.

Na selecção de áreas que devem ser promovidas, o foco deve apontar para as infra-estruturas e áreas onde os países já assumiram compromissos de acesso ao mercado através da Organização Mundial do Comércio (OMC). Isso implica que os formuladores de políticas devem concentrar-se nas comunicações, no turismo, na banca, nos transportes e na energia, seguidos dos serviços de educação, saúde e construção. Um desenvolvimento positivo ocorreu, no início deste ano, com o estabelecimento do mercado único de transportes aéreos africanos da UA, que abrange 23 países e 70% das viagens aéreas em África.

Quanto ao comércio de bens, o objectivo principal do CFTA é abrir mercados através de uma ampla redução de tarifas. Mas antes que isso aconteça, os países africanos precisam de concordar com um cronograma comum para diminuir as barreiras à importação. Isso exige negociações potencialmente complexas entre os vários interessados. Para simplificar, será importante manter um número mínimo de partes negociantes, talvez formando agrupamentos de países. Além disso, deve ser estabelecido um prazo bastante curto para as negociações.

Além das reduções tarifárias transversais, os formuladores de políticas também precisam de designar produtos sensíveis e que estejam excluídos de forma a promover cadeias de valor regionais, inclusive no processamento agro-pecuário, produtos químicos e automóveis, bem como nos insumos de serviços/logística que constituem até 60% do valor dos produtos finais. Os formuladores de políticas também devem impor um limite máximo das importações que podem ser excluídas. No geral, o comércio africano já inclui relativamente poucas linhas de produtos, o que significa que, se os produtos mais comercializados forem excluídos, o comércio intra-africano vai sofrer e o CFTA inteiro será supérfluo.

Embora o comércio sob o regime da CFTA não comece até que haja regras estabelecidas, os participantes concordaram, pelo menos, em seguir os critérios reconhecidos pela Organização Mundial das Alfândegas para determinar a “adição de valor”, o “conteúdo material”, a “transformação substancial” e se os bens são “originalmente obtidos”.

Ainda assim, produzir regras específicas do produto para seis mil bens pode levar muito tempo (a OMC fê-lo em mais de 27 anos). Para acelerar a CFTA, os países africanos podem concordar com um limite mínimo geral de 20-40% para a adição de valor e um máximo de 60-80% para material não original. E, entretanto, o trabalho na determinação de transformação substancial e outras regras específicas do produto pode continuar, embora com prazos estabelecidos.

Um objectivo na definição das regras dos produtos da CFTA deve ser a promoção de produção e o comércio de insumos e outros produtos dentro de África. O CFTA deve consagrar o princípio de ‘Made in África’, mesmo que reconheça que alguns insumos sejam necessariamente provenientes do exterior.

O lançamento do CFTA é um importante marco para África. Mudará permanentemente a geografia económica do continente e vai definir a sua história. Os líderes africanos devem usar a ocasião para enviar uma mensagem clara ao resto do mundo de que África está pronta para uma transformação social e económica.

 

Director de Comércio, Alfândegas e Assuntos Monetários no Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA).