A crónica da nossa carência…
Vivemos tempos difíceis… Estamos num momento da nossa vida política em que a carência de referências e a pressa para que o actual Presidente abandone o palácio nos fazem ver qualquer um como o substituto perfeito. Basta um par de frases ditas com uma fleuma que aparenta alguma dissonância com o 'Inquilino da Vez' e... Bum! A miragem da semana, meus caros, tem nome, sobrenome e pasta: Isaac dos Anjos, o ilustre ministro da Agricultura e Florestas. Depois de uma entrevista concedida à TPA, as redes sociais explodiram num frenesim de exaltação.

De repente, o ministro virou o novo Mandela, a solução para todos os nossos males, o homem que tem, imagine-se, "pinta presidencial". Mas, esperem lá. Se, por todo o tempo, com alguns intervalos, ele fez parte do ‘problema’, poderá ser agora parte da solução? Não sei. Talvez. Cada um que reflicta. E o que fez o ministro ser guindado ao estatuto de Messias Agrícola? As críticas, claro! Críticas que, ainda que sorrateiramente, foram feitas para dentro. Foi lindo! Dos Anjos voltou ao passado para evocar a mítica era da administração portuguesa, em que as fazendas do leste do país eram produtivas. Aqui, talvez, timidamente, tenha contrariado a célebre declaração do chefe, segundo a qual “fizemos mais em 50 anos do que o colono em 500”. O governante questionou, com uma dor sentida e muito politicamente correcta: por que razão hoje em dia assim não é? Ele próprio respondeu-se, não deixando os créditos em mãos alheias: falta empenho e envolvimento, disse! Faltou dizer "de quem", é certo. Mas sejamos honestos, o sujeito era mais do que subentendido. Mas o espectáculo não parou por aí. O ministro voltou à carga contra a importação de "asinhas, rabinhos, pescocinhos, tripas e toda a gororoba" que nos chega à mesa. Mais uma salva de palmas! Um discurso de fibra, sem dúvida. Contudo, mais uma vez, falta um detalhe na sua lógica: apesar de nenhum angolano ter pedido que esses "restos indignos" viessem para a sua mesa, para muitos essa gororoba foi (e é) a única forma de não perecerem de fome. Afinal, há muito boa gente que não consegue adquirir o frango inteiro. É preciso dizer o motivo? Acho que não. Mas fica uma dica: é o mesmo motivo que faz o ministro ter "pinta presidencial" e nós não termos as arcas cheias. E, como xeque-mate, o ministro exortou o Executivo, do qual, só por acaso, faz parte, a admitir que os problemas têm de ser resolvidos de forma pontual, em vez de se andar por aí a fazer de bombeiros. É de uma originalidade estonteante! Há 50 anos que a sociedade civil, analistas e até os bêbados da esquina andam a dizer isso, senhor Ministro! Mas talvez a si, que tem a "pinta", a "dissonância" e o acesso aos gabinetes, finalmente deem ouvidos. Pelo sim, pelo não, vamos guardar o entusiasmo. O banquete continua. E o próximo “salvador” já deve estar a aquecer a voz. E, falando em “salvador”, o único que também sempre fez parte do banquete, entretanto teve a coragem de matar a cobra e mostrar o pau está a ser de azar… É preciso ter a paciência de Jó, ou talvez uma audácia de leão, para aguentar o que tem sido atirado para cima do general. Primeiro, foi a etiqueta de estar mancomunado ao Grupo Wagner. Depois, veio a acusação de ter desviado brinquedos. De mercenário global a gatuno de prendas de Natal. Agora, volta a elevar o estatuto, Higino Carneiro é subitamente associado a um ex-oficial da CIA que se declarou culpado por actuar como agente estrangeiro não registado. Daria um impressionante filme de espionagem, traição e intriga internacional, claro, misturado com comédia! E quem é que faz a conexão brilhante, superando a CIA, o FBI e o MI6 juntos? A nossa TPA! Com a sua inquestionável veia investigativa, que só aparece quando é preciso derrubar um potencial candidato, a televisão nacional descobriu a identidade secreta do tal cliente de Dale Britt Bendler: é ninguém mais ninguém menos que o General Bulldozer. Bem, mas pelo menos Higino Carneiro não se pode queixar de falta de aviso. Como se diz por aí "Teimoso sofre" e o general Carneiro parece estar a sofrer na pele a verdade desta máxima. Então o "árbitro" já não tinha avisado que era arriscado começar a corrida antes do apito inicial? Que quem assim o fizesse corria o risco de não só ser desclassificado, mas de nem sequer chegar à meta? E, pelo andar da carruagem, esta é, ironicamente, uma das poucas promessas que João Lourenço há de cumprir: a de que quem se atravessa no caminho sem ser convidado, não terá um caminho fácil.
Mas voltando à TPA… A nossa amada televisão que tem como marca registada manchar nomes, denegrir tudo o que cheire a oposição, dispensando a ética, os pressupostos do jornalismo e, francamente, a decência, sem que a ERCA emita um pio. Pelo contrário, faz-se de cega, surda e muda quando a comunicação social pública se transforma num martelo de propaganda. Mas, eis que surge a preocupação! Esta semana, a ERCA manifestou-se profundamente alarmada com o editorial de um jornal privado. Um jornal que ousou publicar algo que, segundo a Entidade, "violou as normas éticas e deontológicas do jornalismo" e até mesmo "direitos de personalidade como a honra e o bom nome das pessoas". E que pessoas serão essas que merecem tamanha protecção? As únicas que importam neste país: as que fazem parte do sistema. É fascinante como a régua da "honra e bom nome" se estica ou encolhe consoante o visado. Afinal, quem está fora do círculo do poder pode ser denegrido, ofendido e espezinhado à vontade. Mas, se um jornal privado toca, ainda que de raspão, num membro do ‘establishment’, a máquina reguladora acorda de imediato, brandindo o livro de estilo e as normas deontológicas como se fossem a Bíblia. Não será novidade para ninguém que esta actuação da ERCA não é propriamente uma demonstração de zelo jornalístico. É uma prova cabal de que a ética e a deontologia são, no nosso contexto, ferramentas de protecção do poder e não instrumentos de defesa da verdade e da imparcialidade. É uma justiça selectiva que garante que, na arena pública, só um lado pode sujar a reputação do outro. E, francamente, já nem causa espanto. O máximo que podemos fazer é puxar a cadeira e aguardar o próximo visado.
*Crónica do programa ‘Dias Andados’, referente ao dia 26 de Setembro de 2025
ONU recomenda Angola a rever leis sobre liberdade de imprensa, manifestação e...