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Mitos em economia

A propósito de 'The Déficit Myth'

07 Apr. 2021 Opinião
D.R

O valor de um estudo económico reside na sua capacidade de suscitar e estimular debate, multiplicar as contribuições e acrescentar focos de análise, no sentido de reforçar  teses anteriores ou formular desacordos. Como área de estudo, a Economia constrói-se assim. Por isso, todas as obras marco nesta construção, além de seguidores, tiveram até hoje adversários terríveis.

Há  seguidores críticos situados perto dos adversários de boa-fé. Têm em comum querer introduzir aperfeiçoamentos, sendo em geral economistas preocupados com a montagem do maior número de mecanismos de autocorreção, pois se os modelos económicos têm data limite, o pensamento económico renova-se com igual rapidez. Ou devia.

Mas há os seguidores fervorosos que transformam textos em ideologia imutável e, no lado oposto, os adversários raivosos, às vezes, só porque o trabalho em causa teve algum sucesso e não foram eles os autores. Infelizmente, é nos meios académicos que mais exemplos existem. Quem se opuser a teorias eternas ou ousar inovar vai, de certeza absoluta, arranjar bandos de inimigos entre os colegas, que podem ir muito longe. Até à perseguição e tentativa de destruir a reputação.

É assim porque continua muito difícil distinguir, na prática, entre atividade económica e guerra económica. Esbarrei nesta dificuldade com um trabalho em curso sobre Angola: comecei a pesquisa orientada para ‘História Económica de Angola’ e já mudei o título para ‘Angola – 5 séculos de guerra económica’. Se escrever sobre os altos e baixos da Petrobrás, de Getúlio aos nossos dias, só seria diferente no número de anos.

Quase todos os membros da CPLP estão nessa situação sobretudo se, na guerra económica, incluirmos as experientes brigadas da corrupção. Há motivos para incluir.

Tudo isto a propósito do livro ‘The Deficit Myth’ de Stephanie Kelton, ainda não traduzido em português. Mesmo sem o terem lido já tem gente a fazer-lhe críticas, baseadas nos ataques que certos economistas fazem à autora nos Estados Unidos, onde o clima  nesta disciplina é tão bélico como em qualquer outro país.

Stephanie Kelton é professora numa pequena universidade e a repercussão do seu livro é, por essa razão, mal recebida em catedráticos das maiores, (às vezes, apenas porque possuem maior orçamento). Sublinham bastante que ela foi conselheira da campanha eleitoral de Bernie Sanders, apresentado em alguns círculos, sobretudo trumpistas, como super radical, embora nas margens europeias do Atlântico Norte ele fosse simplesmente um bom social-democrata e, dos dois lados do Atlântico Sul, um reformista. É bom acrescentar, então, que ela trabalhou também na comissão de Orçamento do Senado Federal.

O livro transmite a abordagem base da denominada ‘Moderna Teoria Monetária’ (MMT em inglês, MTM, em português se quiserem), apresentando o que pode ser uma alteração de paradigma. Hipótese encarada até em meios pouco suspeitos de subversão de ideias. Pode ser, afinal, uma atualização de paradigmas que vêm de autores precedentes e que também passaram por ofensivas semelhantes, antes de serem consagrados. Keynes, por exemplo.

Queda de paradigmas?

Trata-se de refletir sobre se o ‘déficit público não é tão mau em si’, ou seja, ele pode mesmo corresponder à excedente do privado. Sem dúvida, o perfil deficitário dos orçamentos decorre, em larga medida, de obras confiadas a empresas privadas e juros de títulos, adquiridos por corporações ou particulares. Ainda assim, merece um detalhe adicional adiante.

O fundo do debate situa-se, de novo, na busca eterna de equilíbrios. A balança de despesas, de um lado, e receitas, do outro, aparece até nos pontos de vista sobre salários: despesa para empresas, receita para os que vivem deles, ultrapassando o mercado de trabalho e abrangendo o de consumo.

Até há pouco, as situações de crise davam lugar a propostas de austeridade, tendo chegado à colonização orçamental decretada por grandes centros de decisão contra alguns países. Enfim, constatou-se que essa prática retirava meios de recuperação e, além disso, os países atingidos eram vítimas de outra limitação: a incompetência dos técnicos enviados para policiar a austeridade.

Com a pandemia, os sacrossantos paradigmas da dívida caíram sem resistência. Nunca se gastou tanto e nunca juros e prazos de pagamento foram tão favoráveis aos beneficiários. Em conjuntos como a União Europeia, passaram a ser realmente beneficiários. Nos Estados Unidos, estão em curso cálculos sobre se os montantes gastos no confronto da economia com a pandemia não seriam superiores aos do país na segunda guerra mundial.

Este assunto não é exclusivo dos Estados Unidos nem dos países desenvolvidos. É geral de todas as economias, grandes ou pequenas, ricas ou pobres porque, na verdade, o ‘déficit’ não é apenas um, mas vários mitos. Já temos aqui uma oportunidade no debate em torno da MTM e do livro de Stephanie Kelton: alargar o campo de análise.

Se um novo paradigma, com valor universal, ficar estabelecido em relação aos défices orçamentais, será possível reequacionar todo o processo de saída do subdesenvolvimento, em grande escala dificultado pelo custo dos pagamentos da dívida. Há países africanos onde este lado do mito representa em torno de 50% dos orçamentos do estado. Como os setores privados são de grande debilidade, é difícil considerar esse perfil orçamental como só relacionado a excedente das empresas.

Mas é útil conferir e, ao mesmo tempo, o alargamento de contextos permite globalizar a discussão abrangendo todos os estágios de desenvolvimento atual.

Fica a questão da inflação cujo aparecimento ninguém vê como mito. Não se trata de propor inflação zero, sempre próxima de algo pior, a deflação. Trata-se de analisar se está ou não controlada, valendo a pena aprofundar sobre as suas causas. Neste ponto, o Brasil tem uma experiência valiosa na medida em que demonstra não haver conclusão definitiva ou sistemática. A fase de modernização produzida pelo governo Juscelino Kubitschek, no fim da década de 1950, teve resultados apreciáveis, apesar da inflação. Nos anos 1980, tudo se passou de forma muito diferente com a hiperinflação e, atualmente, voltam os receios, causadores da recente alta na taxa base do Banco Central.

Receios de inflação existem hoje por todo o lado, notando-se, por exemplo, inflação no setor alimentar tanto em economias de perfil formal como de dominante informal. Paul Krugman acredita que não será nada do mesmo tipo da inflação dos anos 1970. Mais uma razão para pensar no que possa ser e na sua relação inter-setorial.

Assim, à volta da MTM está em debate um bloco para além do estritamente monetário. Mesmo relativizando várias das suas considerações de pesquisa, um ponto é certo: a economia está mais cheia de mitos que a antiguidade egípcia. Os mitos custam caro e temos visto o preço de mitos políticos com efeitos económicos devastadores.