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Nunca é de mais falar de educação (mesmo incomodando)

02 Mar. 2022 Opinião

O sistema de educação (e formação) é uma componente do sistema socioeconómico do país. Se bem que nenhum deles se possa considerar subordinante relativamente ao outro – dadas as mais do que evidentes sinergias, articulações e interligações entre si e já devidamente validadas e confirmadas por inúmeros estudos empíricos – creio, porém, que o sistema económico e a dinâmica de crescimento e modernização que se conseguir imprimir no futuro desencadearão efeitos muito importantes sobre a performance do sistema de ensino, e particularmente pelas vertentes da produtividade e dos salários.

Nunca é de mais falar  de educação  (mesmo incomodando)

No fundo, é uma parte duma discussão mais geral e abrangente que coloca os sectores sociais em confronto com os sectores económicos em termos da prioridade que devem ter no processo de reconstrução do país, numa perspectiva de estabilização e solidificação de alterações estruturais, e de afectação de recursos. É um dado incontornável que a rendibilidade dos sectores sociais – muito particularmente a educação – a longo prazo é a mais elevada que uma economia pode apresentar. Mas forçoso é, também, reconhecer que até se chegar ao longo prazo – enquanto se aguarda que os investimentos humanos e físicos nas infraestruturas sociais se reproduzam com a intensidade que se reconhece – a economia tem de andar1. E é justamente neste quadro que se coloca a ‘velha’ questão do modelo de crescimento económico: intensivo em força de trabalho ou intensivo em capital e tecnologia. O primeiro pode funcionar com uma proporção mais elevada de mão-de-obra indiferenciada, enquanto o segundo só se torna viável e eficiente com uma força de trabalho qualificada e competente. Então sobre esta temática o meu ponto de vista é sinteticamente o seguinte: os sectores sociais são primeiro consumidores de recursos antes de serem produtores de capital humano. Os sectores económicos, mais reprodutivos a curto/médio prazo, são quase imediatamente produtores de crescimento económico, o que é fundamental para o financiamento do desenvolvimento social. Só que haverá um momento – que deve ser determinado e que varia de país para país consoante o seu estádio de desenvolvimento – a partir do qual o subdesenvolvimento e atrofiamento dos sectores sociais impedem a reprodução, em escala alargada e tecnologicamente intensiva, do sistema económico, constituindo-se, então, num entrave ao desenvolvimento económico e à modernização dos sistemas produtivos. Se o processo de crescimento e equilibragem dos sectores sociais e económicos for mais ou menos este – nas primeiras etapas os segundos devem garantir a acumulação (poupança) necessária para o financiamento dos primeiros – então os primeiros estádios da reconstrução e crescimento poderiam ser sobretudo preenchidos pelos sectores económicos e que o primeiro sector social a ser privilegiado na criação das condições básicas para a sua extensificação e intensificação futuras deveria ser o da educação, como o grande alfobre da constituição do capital humano do país. O aparecimento/determinação daquele ponto de inflexão traduziria, por exemplo, o esgotamento dum modelo de crescimento intensivo em mão-de-obra e a necessidade de se passar a um outro mais apoiado em capital, tecnologia e “know-how”2. Por isso é que a programação do desenvolvimento económico deve ir de par com o planeamento da educação, alimentando-se, mutuamente, com informações e convergências de projectos e acções. Apesar da necessária ‘décalage’ entre sectores sociais e sectores económicos nas primeiras etapas dum processo de reconstrução e crescimento económico, os investimentos nos primeiros, mormente na educação – que é uma verdadeira infraestrutura do desenvolvimento sustentado – não devem situar-se abaixo duma certa massa crítica, sob pena de se entrar numa zona de descapitalização de saber e de conhecimentos. Estes limites críticos, atendendo às estatísticas sociais em Angola, desde sempre, não foram levados em consideração pelos gestores públicos depois da independência.

A guerra, a deficiente gestão dos recursos públicos e a corrupção impediram que Angola aproveitasse uma oportunidade histórica de, simultaneamente, investir, com intensidades semelhantes, nos sectores económicos e nos sectores sociais, conferida pelas elevadas receitas do petróleo. Se aqueles empecilhos não tivessem existido, o debate, hoje, sobre a produtividade e a competitividade colocar-se-ia num outro patamar bem diferente.

As considerações anteriores justificam que se dê à questão da educação em Angola – para delimitar os respectivos intervalos de possibilidades de progressão, modernização e desenvolvimento – um enquadramento macroeconómico, porque, e como referido já anteriormente, se lida também com realidades e conceitos de produtividade e salário.

O sistema de educação de Angola padece, desde a sua implementação três anos depois da independência, de três problemas essenciais: o limitado acesso, a baixa qualidade e os exíguos recursos financeiros para a sua expansão e melhoria. Problemas que se arrastam e dos quais derivaram características estruturais difíceis de ultrapassar a médio prazo: elevadas taxas de insucesso escolar, má qualidade do ensino derivada da baixa qualificação dos professores, excessivas taxas de abandono escolar devido à incidência da pobreza3 e deficientes estruturas escolares por falta de investimentos básicos em capital público físico. Se se acrescentar o intenso crescimento demográfico do país – a uma taxa média anual de 3% – fica-se com um retrato fiel da situação do sector da educação. É justamente num contexto como este que a questão da política salarial deve ser equacionada. E o ponto de reflexão pode ser este: é pela política salarial que os crónicos problemas do sistema de educação em Angola devem começar a ser resolvidos? Melhores salários do pessoal docente serão suficientes para se atenuar sensivelmente o quadro de ineficiência do ensino? É evidente que as remunerações dos docentes são apenas uma parte do problema, e, por isso, falar-se apenas de política salarial dos docentes é muito redutor. O que é uma política salarial para o pessoal docente? Que objectivos deve prosseguir? E com que instrumentos os atingir?

Seguramente que o Governo e as organizações sindicais representativas do pessoal docente já confrontaram, por várias vezes, as suas propostas de política de remuneração para os trabalhadores deste sector. E ainda que o acordo não tenha sido total – as greves são disso uma prova – existe uma política salarial do Estado para a vertente pública do sistema de ensino. Evidentemente que para a componente do ensino privado não existe política salarial, a não ser a que é determinada pelos mecanismos do mercado de trabalho.

1 É igualmente por este viés que os 27 anos de guerra civil devem ser apreciados: os investimentos maciços na educação deveriam ter começado logo imediatamente depois da independência – atendendo ao estado em que o sistema colonial deixou o país neste aspecto – para que hoje estivéssemos a colher os respectivos frutos em matéria de produtividade, salários, competitividade, modelo capital/tecnologia intensivo, sociedade baseada no conhecimento, etc. Muito mais do que foi feito poderia ter sido realizado, não fossem a deficiente gestão dos recursos públicos, a corrupção, a escala(última) que a educação sempre mereceu no processo das escolhas públicas, etc.

2O ponto de inflexão representa o abrandamento do ritmo de crescimento económico assente num modelo proporcionalmente intensivo em mão-de-obra indiferenciada, que tem subjacente uma determinada proporção constante dos investimentos em educação. Evitar/ultrapassar este ponto de quebra de intensidade do crescimento passa por se alterar/inverter a proporção na taxa global de investimento da economia em favor dos sectores sociais, criadores de condições de aumento do produto potencial da economia.

Alves da Rocha

Alves da Rocha

Economista e director do CEIC/UCAN