ANGOLA GROWING
CELESTINO CHITONHO, BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ARQUITECTOS

“Sem políticas públicas de arquitectura não pode haver desenvolvimento”

10 Nov. 2021 Grande Entrevista

Propõe a transformação da arquitectura em produto do Prodesi, argumentando que o arquitecto “é médico da cidade”. À frente de uma organização com 1.700 membros e defensor de regras mais rígidas no acesso à Ordem, Celestino Chitonho lança várias críticas à governação no domínio da arquitectura, da urbanização, explicitando a relação destas com a saúde e a economia.

“Sem políticas públicas de arquitectura não pode haver desenvolvimento”
D.R

Ordem dos Arquitectos de Angola tem sido muito questionada, por supostamente fazer pouco pela classe. Como contra-argumenta essas críticas?

Tomámos posse em Dezembro de 2019 e, no primeiro e segundo meses de 2020, começou a pandemia. Angola teve estado de emergência em Março e houve um fechamento quase global. Porém, mesmo com a crise económica e a pandemia, creio que a Ordem é das instituições que mais cresceram.

Crescimento em que sentido?

Já tínhamos um plano estratégico, definimos as metas e as acções porque o vírus nos assustou a todos. Mas chegámos a seis e sete meses de pandemia e percebemos que se tratava de um problema que poderia demorar muito mais tempo do que se pensou inicialmente e começámos a pôr em marcha o nosso plano de trabalho.

O que foi, de facto, concretizado?

A visita a todos os gabinetes para constatar a capacidade instalada, a formação de arquitectos em política pública de arquitectura. Devo destacar também o espaço para o museu de arquitectura que já existe. Depois de recebermos a documentação, será preparado o concurso para o projecto e daí apurar o valor da construção da obra. Por outro lado, no próximo mês, vai entrar em acção o plano de formação facultativa e obrigatória dos arquitectos. Quer dizer que qualquer um que queira entrar, além do teste obrigatório de acesso, terá de dominar os estatutos, o código de ética, a Lei de Terras e do Urbanismo e Ordenamento do Território, a Constituição da República, portanto o objectivo é aumentar o nível da classe.

Muito se questiona a alegada falta de uma actuação institucional forte da Ordem…

As críticas de hoje já não são as mesmas do passado. Os que ainda continuam a criticar estão fora do tempo, estão descontextualizados. Demos passos muito sólidos que não eram expectáveis em tempo de pandemia. Mudámos toda a nossa identidade visual, à luz de um concurso público, quando a Ordem completou 17 anos. Portanto, temos uma nova logomarca. Lançámos o site, onde os membros podem encontrar toda a informação que permitirá desburocratizar até mesmo a emissão da declaração com código de barras, que habilita o arquitecto a elaborar projectos. Logo, para um simples papel, já não será necessário ir à Ordem, porque desburocratizámos o processo administrativo. No nosso plano estratégico, consta também, além do museu, uma nova sede. Ainda é sigiloso, mas acredito que pode ser concretizada antes do fim do nosso mandato.

Fala-se do generalizado exercício ilegal da profissão. Isso não entra no leque de preocupações?

Preocupa bastante. Começámos o combate a esse exercício ilegal. Aliás, muitas administrações municipais e governos provinciais ainda permitiam que indivíduos não inscritos na Ordem fizessem projectos. O fenómeno ainda acontece, mas tem vindo a diminuir, porque a sensibilização é maior. Ou seja, do ponto de vista de políticas de arquitectura, estamos a formar os nossos membros e o Executivo também precisa de ter coragem para dar esse passo.

Que passo exactamente é que deve ser dado pelo Governo?

Desde 2010 que Angola está a falar de ordenamento do território. Lançou-se o plano director para todos os municípios, elaborou-se o plano geral metropolitano de Luanda. Benguela é outra província com os municípios com planos directores e Malanje está em vias de entregar. O plano director é um documento que define como deve crescer uma cidade. Só que o Governo não tem verba no OGE para esses planos directores. 

Isto quando há um plano de criação de novas províncias…

Ainda não percebi bem qual é a essência desta nova divisão administrativa.

A ideia é aproximar a governação perto do cidadão. Resumidamente é o que defendem as autoridades.

A gestão não melhora com a divisão administrativa. Em arquitectura, existe a área do urbanismo cuja premissa é maximizar a aproximação dos serviços. O que se deve aproximar à população são os serviços e não a administração pública, do ponto de vista político. Posso criar uma nova província, colocar lá um governador, um novo administrador, mas, se não colocar lá serviços, nada representa.

E de que forma é que a análise técnica pode sobrepor-se à política?

As asserções dos técnicos não estão a ser ouvidas. Os planos directores que não estão a ser feitos, em parte, iriam ajudar essa dinâmica, porque definem o que são serviços quotidianos e periódicos. Definem, por exemplo, que a padaria não pode ficar a mais de 600 metros das habitações, porque todos os dias há a necessidade de se comer pão. A nossa abordagem, enquanto Ordem, é bastante responsável. Em vez de falarmos desnecessariamente, quando sentimos que há um problema, escrevemos directamente para a entidade competente.

Mas já disse que não são ouvidos…

Em parte, sim, em parte não. Depende muito da agenda e maturidade políticas.

O que quer dizer?

Quando decidimos propor ao Governo a arquitectura como produto do Prodesi e como política pública é com base no entendimento de que o arquitecto hoje é como se fosse o médico da cidade. Se a cidade crescer desordenadamente, vai afectar a saúde das pessoas. Se os governos não perceberem isso, como às vezes está a fazer o nosso, em determinadas questões muito específicas, o que vai provocar? Se tenho de comprar pão todos os dias e percorrer cinco quilómetros, vou provocar engarrafamento desnecessariamente. Num serviço quotidiano, a escola primária tem de estar a 600 metros de distância no máximo, porque, se não, teremos crianças a percorrer cinco a seis quilómetros. Daí a nossa proposta que tem que ver também com o estabelecimento do padrão mínimo de habitabilidade.

Como pode ser operacionalizado esse plano?

Quando o Governo constrói ou os privados, qual é a condição mínima básica obrigatória de habitabilidade a colocar? E qual é a condição mínima para a nossa dignidade enquanto seres humanos?

Espero que responda às suas próprias perguntas…

Em Angola, nada está definido. A nossa ideia é que se defina. Gostaríamos que, sempre que houver um aglomerado populacional, até as lojas de primeira necessidade, a par das escolas, estivessem num raio de 600 metros da comunidade. Por isso é que os ‘mamadus’, como nós chamamos esses estrangeiros, conseguiram infiltrar-se nos bairros e estão logo à mão do consumidor. Colocaram-se no espaço dos serviços primários que os livros definem há muito.

Há falta de visão nos angolanos?

Nós, os angolanos, não estamos a ter visão de muita coisa. Não só necessariamente no domínio específico dos espaços comerciais de primeira necessidade. No padrão mínimo de habitabilidade, onde temos população temos de ter ou não esgotos? Até quando vamos continuar a abastecer a população com recurso a chafarizes? Até quando em várias localidades do país uma criança para ir à escola tem de andar desgastantes cinco a 10 quilómetros? Até quando, nos nossos aglomerados populacionais, teremos parques infantis, jardins para as crianças brincarem? Estamos perdidos!

Concretamente, onde têm sido encaminhadas essas inquietações?

Escrevemos para a equipa económica do Governo, mas a carta ainda não foi respondida. Entretanto, fomos chamados pelo MPLA para abordar o assunto. É diferente, gostaram e fizeram algumas questões. O reconfortante é que seria levada em conta essa ideia de transformar a maneira como o Governo pensa a produção nacional. E o Prodesi, supostamente, tem que ver com produção nacional.

Uma produção que, entretanto, tarda a acontecer…

Por falta deste tipo de dimensões que elenquei que deveriam ser incorporadas. Hoje em dia estamos na era da digitalização, logo a produção nacional não é só a mandioca ou o feijão. Um jornalista também produz. Só que o Governo tinha de dizer: ‘eu, para lhe financiar um projecto, tem de ter 80% de conteúdo local’. O que nós propusemos é: ‘se sou arquitecto, faço um projecto, logo vou apontar a telha e a porta de fábricas locais. Assim ajudo a impulsionar a economia nacional.

Há incapacidade de produção local de materiais de construção?

Há que colocar aqui dentro fábricas que produzam para potenciar o mercado interno. O que acontece é que a nossa equipa económica está com o pensamento na era industrial, que já passou há muito tempo. E, se assim continuar, assente na era industrial, a nossa economia serão apenas números.

Como inverter esse quadro?

Faltam políticas públicas de arquitectura. Há uma lacuna enorme do ponto de vista da produção dos materiais de construção. Imagine só: Angola não tem sequer uma fábrica de loiça sanitária. Qualquer pessoa que queira fazer uma construção que implique sanita e lavatório vai ter de importar e isso representa dispêndio de divisas. Estamos a alertar para isso há muito tempo no âmbito da dimensão da arquitectura como produto do Prodsi, ou seja, olhar para aquilo que não existe e colocar aqui.

Não vamos imitar a Europa. Mas é preciso definir que, à luz da nossa realidade, é preciso ter água, energia eléctrica ou uma rede de transporte e estrada. Em Angola ainda acontece: faço uma estrada que passa por uma aldeia e não é colocado um passeio para a circulação dos peões, como se não tivesse população que, para as suas necessidades, acaba por andar na estrada com os riscos daí decorrentes.

Os associados estão unidos?

O tempo de dizer que a ordem não é ouvida já passou. O que estamos a ensinar aos nossos associados é que quando se fala de políticas públicas as classes organizadas podem agir como grupos de interesses ou de pressão porque os arquitectos são liberais, mas temos também os que estão vinculados à função pública. Estamos a lutar para que haja entrosamento como devem agir no local de trabalho para que sejam produtivos e o Governo saia a ganhar. Por isso, eles também devem estar inscritos na ordem.

O arquitecto da função pública não é produtivo?

Se a nossa classe for bem estruturada, acabará por ser muito forte. Por isso é que defendemos e estamos a preparar o estatuto do arquitecto da função pública. A arquitectura lida directamente com o bem-estar das pessoas. Se os arquitectos da função pública notarem que estão a acontecer construções que ferem a lógica, devem pronunciar-se.

E podem fazê-lo sem receio?

Há esse receio, mas se assim acontecer  OA sairá em defesa do associado. Quando eclodiu a pandemia, formámos os nossos arquitectos da função pública para a concepção de estruturas como centros de quarentena, centros médicos e hospitais. Notámos que, no princípio, quando o Governo começou a construir, não teve em conta essa formação. Alguns dirigentes, quando tomam decisões, não querem ouvir ninguém. Com o tempo, os nossos arquitectos alertaram para o que não estava bem.

O que nos deixou tristes é que demos propostas concretas para as vendas ininterruptas nos mercados, mas o Governo tomou medidas como se o contágio acontecesse também em dias alternados. Poderia vender-se todos os dias, mas reduzindo as pessoas para se manter o distanciamento. Visitámos o mercado do KM 30, na altura, o mais polémico, e enviámos um documento à Comissão Multissectorial a traduzir como se devia organizar o processo de vendas naquele espaço em tempo de pandemia e lamentavelmente não fomos acatados.

Qual é a relação da Ordem com a academia?

Temos de colocar no mercado arquitectos de alto nível que percebam a nossa realidade. Há questões que teremos de discutir com a academia. A maior parte das nossas escolas foi em busca da grelha curricular lá fora com um contexto diferente. Por exemplo, os nossos estudantes não sabem o que é a transumância, sinto que as nossas universidades herdaram a cultura do assimilado. 

E onde isso se reflecte?

O Governo tem construído centralidades em altura e vivendas. Verifique só no Nova Vida quantas vivendas não foram alteradas? Quase todas, porque o que foi feito não responde aos nossos hábitos. Precisamos de pensar e projectar para o angolano. Se estou em Angola, há uma gastronomia própria, logo a cozinha tem de responder a esse desiderato.  As cozinhas que os colonos deixaram tinham o complexo do colonizado e havia fiscalização de segunda a sexta-feira. Não se podia cozinhar comidas tradicionais, por causa da fiscalização. Quem fosse apanhado a comer funje não tinha direito ao bilhete de identidade e continuava indígena.

A Ordem vive apenas de quotas?

Existe um documento chamado contrato-programa, nos termos do qual a Ordem tem de funcionar como uma entidade orçamentada. Mas isso choca com os nossos estatutos. Foi assim que o anterior bastonário decidiu não ir por este caminho porque atropela os estatutos das ordens. Se o Governo já está mesmo em crise, então que fique à vontade, não estamos a reclamar, porque somos uma classe profissional que deve aprender a crescer de forma autónoma.

Luanda é uma cidade permanentemente suja?

Desde que esteve no comando de Luanda a governadora Joana Lina, eclodiu o problema do lixo e nós voltámos à carga com as políticas públicas de arquitectura. Propusemos que os sítios de acomodação do lixo na cidade fossem plataformas subterrâneas para ninguém ver os detritos fedorentos. Assim, preserva-se a saúde pública, porque os animais e as pessoas não terão como vasculhar o lixo, sendo que a plataforma fecha. Escrevemos para os ministério da Construção e do Ambiente, mas nada transpirou. Agora que temos uma governadora arquitecta, auguramos que o propósito seja considerado.

Mas o Ambiente também não respondeu?

Relativamente aos resíduos sólidos, acho que o Ministério do Ambiente ficou refém do arranjo que se fez juntando-o ao Turismo e à Cultura. Não funciona. Era necessário rever a política do ambiente para questões muito estratégicas, mesmo não sendo um ministério à parte, a responsabilização tinha de ser diferente.  Em muitos países, há uma secretaria de Estado para o Ambiente e porque há políticas públicas a funcionar. O problema do nosso país é a falta dessas políticas públicas em muitos sectores. Num país organizado, uma pessoa que abra o vidro do seu carro e deita uma lata vazia ao chão é multada.

Qual o vosso posicionamento sobre a proposta do rio Luanda?

Aconselhava os proponentes a criarem a realidade virtual. Hoje em dia, em arquitectura e engenharia, já é possível apresentar um projecto em que se simula a passagem de um rio.

A simulação não existe?

Falei com as pessoas e constatei que não existe. Posso fazer uma casa e simular como vai funcionar e com que materiais posso contar e onde podem ser encontrados. Com isso pouco tempo e recursos até mesmo de manutenção das obras. Já estamos a ensinar os nossos arquitectos a dar esse passo.  Estamos a fazer muitas obras sem projecto, por isso é que, mesmo no PIIM, temos muitas obras encalhadas. São várias obras que nem sequertêm cabimentação orçamental. A ideia do PIIM foi boa, mas a sua execução é uma fraude. Só por curiosidade, recentemente fomos chamados pelo Serviço Nacional de Contratação Pública. Assustadoramente, apercebemo-nos que tem havido contratação de obras sem contratação de projecto. Uma boa obra começa com um bom projecto e, se necessário, com simulação virtual. É assim em todo o mundo.

Está a pôr a carroça à frente dos bois?

Se tenho milhares de obras, mas ainda não tenho projecto, estou a pôr a carroça à frente dos bois. A Ordem apanhou um susto. Quando participámos das jornadas do urbanismo, verificou-se que não há verbas para os planos directores. Se tenho milhares de obras, mas ainda não está ordenado o território, é complicado. As pessoas não estão a perceber as coisas. Fizemos um draft para saber quantos arquitectos precisamos por habitante.  Benguela, com nove municípios, já entregou os planos directores, mas oito deles não serão aplicados porque, nos municípios, não existe uma entidade capaz de ler os projectos. E a resposta que nos deram é que, devido à crise, o Ministério das Finanças cortou a admissão de pessoal.

A ordem está circunscrita apenas à capital do país?

Já estamos para além de Luanda, em Benguela, Uíge e Cabinda, mas tudo está a ser feito para chegarmos a todas as províncias...