Um Acórdão que suscita todas as dúvidas
O país teria razões para soltar fogo de artifício pelo Acórdão nº845/2023 do Tribunal Constitucional (doravante TC) que declarou inconstitucional o Decreto Presidencial nº69/21, de 16 de Março, se a decisão não trouxesse os efeitos que o tribunal decidiu atribui-lo. Seria de facto um raro momento de check and balance. Porém, a decisão mergulhou o país num debate sobre o alcance dos efeitos aí contidos.
Ensina a doutrina, e aqui seguimos apenas Carlos Blanco de Morais (Justiça Constitucional, Tomo II, pp.823 ss), que a sanção natural ou ordinária de normas declaradas inconstitucionais em processos de fiscalização abstracta sucessiva é a nulidade.
Nulidade significa a eliminação da norma do ordenamento jurídico assim como os efeitos que a mesma haja produzido desde o momento em que ocorre a ofensa à norma parâmetro, pois, a razão de ser, escreve o autor, assenta nos “interesses públicos presos à defesa da intangibilidade da Constituição que não são, por regra, postergáveis por outros interesses públicos nem por interesses privados”.
A doutrina fala em nulidade absoluta (tal como exposto supra) e relativa quando o Tribunal Constitucional é autorizado a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. O objectivo desta última é, de acordo com Carlos Blanco de Morais, “preservar uma pluralidade de actos e contratos fundados na norma declarada inconstitucional, contanto que os mesmos sejam considerados merecedores de consolidação”.
É precisamente isso que estabelece a Constituição da República de Angola, nos termos dos nº1 e 4 do artigo 231º. Ou seja, o Tribunal Constitucional pode fixar efeitos restritos por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público execepcional, devendo para o efeito fundamentar quando assim procede.
O Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o Decreto Presidencial 69/21, por entender (e bem) que o diploma violava uma competência absoluta da Assembleia Nacional para legislar sobre a matéria, nos termos do art.164º, als c) e d). No entanto, fixou à decisão efeitos que estão a suscitar discussões sobre os quais são fundamentos para tal opção bem como o alcance dos efeitos.
Diz o Acórdão na parte final o seguinte: (…) “dada a evidente necessidade de se garantir a equidade e segurança jurídica, este Tribunal considera que devem ser ressalvados os efeitos entretanto produzidos pelas normas em causa” (…). E a questão que se coloca é o porquê da decisão quando a entidade que afectou os bens não devia, assim como os beneficiários não têm sido os órgãos, mas magistrados que desviaram a finalidade da comparticipação conforme o diploma (art.3º do Decreto Presidencial nº69/21). Existem, a propósito, duas interpretações.
A primeira considera que o Tribunal Constitucional pretendeu, com estes efeitos, assegurar que os bens transferidos para os Tribunais e o Ministério Público devessem continuar na esfera destes órgãos, ou melhor, de alguns magistrados que se apropriaram destes, apesar de não existir nenhuma base legal, pois o Decreto Presidencial afectava-os aos órgãos e não a individualidades.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional com a decisão acabou por afectar bens do Estado quando, no Acórdão, reconhece ser competência absoluta da Assembleia Nacional legislar sobre o assunto. Desempenhou assim um papel de legislador positivo (e não de legislador negativo a quem incumbe expurgar do ordenamento jurídico normas nocivas ou prejudiciais).
Segundo ainda esta corrente, na qual me incluo, o Tribunal Constitucional não atendeu aos interesses de cidadãos cujos julgamentos ou processos podem ter sido julgados por alguns dos magistrados que agora se apropriaram destes bens. Portanto, julgamentos falhos de isenção e imparcialidade.
A segunda opinião considera que os efeitos estabelecidos pelo Tribunal Constitucional não salvaguardam situações não resolvidas, como processos não transitados em julgado ou ainda bens que tenham ultrapassado os dez por cento bem como o desvio de finalidade.
Porém, essa corrente não responde à questão de se saber se competia ao Tribunal Constitucional afectar bens do Estado, quando a entidade para legislar o assunto é a Assembleia Nacional. A outra nota que suscita perplexidade, e daí todas as nuvens negras à volta do Acórdão, é o facto de o Tribunal Constitucional não ter fundamentado as razões na base das quais lançou mão da excepção do nº4 do art.231º, e não o efeito natural segue este tipo de processo, ou seja, nulidade absoluta. O Tribunal Constitucional limitou-se a transcrever a norma da Constituição e não disse quais são ou eram as razões de segurança e equidade que resolveu salvaguardar. As dos magistrados que se apropriaram dos bens, preterindo todos os seus colegas, quando a norma do diploma que pretendia afectar os 10% refere que “a comparticipação recebida nos termos do presente Diploma destina-se a melhorar as condições de funcionamento dos Órgãos da Administração da Justiça” (art.5º). Portanto, uma aclaração ao Acórdão precisa-se.
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