Manuel Gonçalves, ex-PCA da Ensa

“A decisão de privatização da Ensa já é muito antiga, foi tomada em 2003”

Considera “claramente de mais” os 17 anos consumidos no processo de criação da resseguradora nacional que, entretanto, continua a não ser uma realidade. Também critica a morosidade no processo da reforma da justiça e fala da sua passagem pela Ensa.

“A decisão de privatização da Ensa já é muito antiga, foi tomada em 2003”

 

Liderou o processo de reestruturação da Ensa e deixou de ser PCA no final do ano passada, praticamente em cima do início do processo de privatização. Que empresa encontrou e deixou?

O que mais importante encontrei foi a qualidade dos quadros da empresa, na sua quase totalidade nacionais. E, das maiores dificuldades, a incipiente cultura organizacional e o insuficiente apoio do accionista. A missão principal foi motivar os quadros para os objectivos estratégicos, que em conjunto definimos, e delinear um processo de transformação capaz de gerar sérias mudanças no sentido da modernização. Num projecto com a duração inicial de três anos, conseguimos concretizar 64 iniciativas e mudar a empresa em praticamente todos os seus aspectos, nos domínios organizacionais, dos processos, alterando-os em cerca de 95%, das tecnologias, em que a inovação foi quase total com a introdução de plataformas robustas internacionalmente reconhecidas, a alteração do modelo de negócio e ao nível dos recursos humanos, investindo seriamente na formação. Deixámos a empresa com os resultados desses projectos. 

Que resultados?

Passámos a ter reconhecimento público nas instituições de tutela e reguladoras, e do mercado, com a melhoria da nossa imagem e da confiança dos nossos clientes. Melhoraram os indicadores operacionais e económico-financeiros de uma empresa que passou a ter resultados positivos. Foi motivador o reconhecimento pelo Isep, durante as sessões públicas de apresentação de contas, como a primeira empresa de capitais públicos a fazer prestação de contas ao longo de quatro anos consecutivos. Durante anos consecutivos, a empresa esteve e continua no topo do ranking das empresas seguradoras nacionais. Isso é muito relevante se considerarmos que, em 2000, tínhamos perdido a gestão do seguro do petróleo e, por outro lado, verificou-se um crescimento significativo dos players do mercado, passámos a ter quase 30 empresas seguradoras, algumas das quais com accionistas centenários com vasta experiência internacional ou com accionistas financeiramente muito fortes, designadamente ligados à banca. Outro dado a reter é que a Ensa foi considerada a única empresa do universo empresarial público, com mais de 150 empresas, com rating internacional concedido pela Standard&Poors, o que mostra bem o esforço desenvolvido por todo o conjunto dos trabalhadores da empresa e respectivos líderes. 

Mas a concorrência pensa que esses resultados, em parte, são explicados por uma certa protecção do Estado de que a Ensa beneficiou.

Nunca ouvi nenhuma referência explícita da concorrência a falar de protecção. Nem ela existia. O apoio financeiro do accionista foi completamente nulo. Tivemos um passado com compliance inexistente, em que a política e a microeconomia se misturavam e, nessas condições, era mais fácil os titulares dos diversos poderes protegerem as empresas privadas onde tinham interesses. A Ensa é pública e todas as demais empresas de seguros são privadas e não estavam isentas de PEP. Ainda assim, em geral, tivemos um mercado com livre concorrência. 

Ter liderado, por exemplo, o co-seguro petrolífero, durante certo tempo, com parcelas superiores, face às demais, não foi protecção?

Decididamente, não! O seguro petrolífero tinha um regime próprio. Havia um co-seguro, que é uma espécie de consórcio, em que todas as outras seguradoras indicadas pela Arseg tinham participação e uma determinada quota. O líder do co-seguro tinha a missão de gerir em nome de todos, com níveis de transparência que permitiam que cada uma constatasse quais eram os seus direitos e reclamar se fosse caso disso. 

As seguradoras passaram, nos últimos anos, entretanto, a defender, de forma persistente, a necessidade de uma rotatividade na liderança, porque achavam injusta a liderança exclusiva da Ensa.

A passagem da gestão para a Ensa foi o resultado da posição tomada por todas as seguradoras durante muito tempo e, particularmente, num conselho técnico do Ministério das Finanças sobre o sector. Todas as seguradoras defendiam a mudança para a Ensa. E a alteração foi consensual. Posteriormente, foi-se defendendo um modelo de co-liderança, o que foi aceite sem dificuldade a nível de todas as seguradoras reunidas no âmbito da Associação das Seguradoras de Angola (Asan). Seja como for, independentemente do líder, o fundamental é que as regras estejam claras, que permitam a transparência e que cada um possa ter aquilo a que tem direito. Agora, que fique claro um pequeno mas decisivo detalhe: quem decide quem são as entidades seguradoras que devem fazer parte do co-seguro é a Arseg, a entidade reguladora. E a Ensa recebeu, no momento em que eu lá estava, tal como recebeu agora, no momento em que já lá não estou, a indicação por parte da Arseg de quais são as seguradoras que têm direito a integrar o co-seguro. E nem todas fazem parte, por razões óbvias de natureza financeira, ou de natureza legal que estão devidamente previstas nas normas. Hoje, aliás, ainda há menos seguradoras a participar no co-seguro do que havia antes. 

A necessidade de a Arseg indicar algumas seguradoras para fazerem parte do co-seguro pode ser entendida também como sinal de existência de muitas seguradoras no mercado?

O número de seguradoras não é nada que me preocupe. O importante é que haja concorrência livre e leal, e que vençam os melhores. Quanto mais seguradoras houver, o que acontece é que mais diversidade ao nível do produto e de preço haverá no mercado e mais possibilidades de escolha os clientes terão. É uma questão de concorrência em que apenas os mais fortes sobrevivem e os outros desaparecem naturalmente. Mas é preciso efectiva supervisão e fiscalização por parte da Arseg, para controlar a solvência das seguradoras e a sua capacidade para assumir responsabilidades caso venham a ocorrer sinistros que ponham em causa os interesses das empresas, trabalhadores ou das famílias, ressarcindo os prejuízos causados. 

Iniciou a privatização da Ensa e há correntes a defenderem que, considerando a situação económica do país, não se devia optar por esse processo agora, face ao risco de subvalorização do activo. Qual é a sua opinião?

Muita gente não saberá que a decisão de privatização da Ensa já é muito antiga, tomada em Conselho de Ministros em 2003, no momento da sua transformação em sociedade anónima. Mas, por diversas razões, não foi concretizada. Portanto, era uma questão de tempo. Creio que devemos respeitar a decisão, partindo do pressuposto de que ela foi devidamente ponderada por parte do accionista Estado e insere-se numa estratégia necessária e séria. A privatização poderá ser parcial, o accionista poderá pretender ir buscar outros parceiros estratégicos que aportem valor para a organização e a empresa tornar-se ainda mais forte, com benefícios para a sociedade comercial e para o accionista, e ainda benefícios indirectos no plano tributário, independentemente dos benefícios directos por via da alienação. 

Acredita que teremos players do mercado interessados na Ensa?

Há uma estratégia de privatizações em curso e uma decisão global tomada há tempos e há dias um Diploma Presidencial muito específico em relação à Ensa. Portanto, estamos numa fase em que não há ainda a abertura de concursos, mas é muito provável. É natural que exista alguma apetência relativamente à aquisição de parte da organização por investidores do mercado interno ou mesmo internacional. Trata-se de um bolo apetecível… 

Com que valor de mercado deixou a empresa?

O processo de privatização implica todo um trabalho de avaliação que deve ser feito por determinadas entidades, independentes e designadas em consequência do concurso, para que haja rigor absoluto na determinação do valor da organização, e estes dados não são ainda conhecidos.

“A decisão de privatização da Ensa já é muito antiga, foi tomada em 2003”

A Ensa tem um acervo cultural considerável como resultado do prémio Ensa Arte. Que tratamento acha que se deve dar a este acervo no processo de privatização?

A Ensa tem um acervo cultural muito interessante. Diria que a Ensa talvez tenha, para não dizer peremptoriamente que tem, porque não tive a oportunidade de fazer uma avaliação de outras realidades, o maior acervo cultural no domínio das artes plásticas contemporâneas, especificamente em matéria de pintura e escultura do país. E isso é resultado de muitos anos de existência do Ensa-arte, na medida em que as obras vencedoras se tornam propriedades da Ensa e passam a integrar a sua colecção. Independentemente do aspecto material, tratando-se de uma bienal, facilmente perceberemos que essa colecção representa a evolução histórica das artes plásticas em Angola, pelo que tem um grande significado cultural. É sabido que há alguns anos, no maior evento de artes plásticas do mundo, que é a bienal de Veneza, o pavilhão de Angola foi o vencedor do maior galardão internacional, com uma exposição fotográfica de Edson Chagas, e igualmente uma exposição de pintura e escultura integralmente composta por obras da Ensa. 

O que tudo isso significa?

É muito significativo, isso quer dizer que a Ensa ajudou a colocar Angola no mundo, do ponto de vista cultural, e a demonstrar o valor dos artistas nacionais. Por essa razão, acho que a Ensa deve continuar a organizar o Ensa-arte, e por isso, todo o acervo cultural deve manter-se com a organização. Há peças que poderão ser colocadas em museus, mas não deve deixar de fazer aquilo que faz muito bem. 

Falou dos bons quadros que encontrou. No entanto, o seu último ano ficou marcado por um descontentamento por parte dos trabalhadores que reclamavam apoio da empresa em créditos que tinham solicitado. O que se passou concretamente?

Em benefício dos seus trabalhadores, a administração celebrou protocolos de crédito habitacional com bancos, em moeda nacional. O resultado foi espectacular, com valores de crédito muito altos adquiridos pelos trabalhadores que, assim, viram a possibilidade de melhorar as suas condições habitacionais. Mais: sem necessidade de apresentação de garantias e com algumas vantagens concedidas pela empresa. Quando começou a instabilidade cambial no país, constatou-se que vários contratos de mútuo, celebrados entre os bancos e os trabalhadores, não seguiram as normas dos protocolos e foram gerando alterações nos capitais e juros, provocando erosão da massa salarial. Iniciámos de imediato renegociações com um mecanismo de acompanhamento por representantes dos trabalhadores e encontros periódicos com a generalidade dos interessados, que conduziram a diferentes soluções e à celebração de novos contratos. 

Durante todo o período que esteve na Ensa, acompanhou o dossier do surgimento da resseguradora. O que acha que tem estado a atrapalhar o arranque definitivo da resseguradora nacional?

Creio que a Arseg e o Ministério das Finanças que, ao longo dos anos, têm dirigido este processo, estarão em melhores condições para clarificar. Apenas direi que 17 anos é claramente de mais. 

Se tivesse de alterar ou sugerir alterações no mercado segurador, quais seriam?

Limito-me a referir o quadro regulador do sector. É muito antigo e a reclamar muitas inovações. O prazo que o Ministério das Finanças concedeu para as necessárias alterações há muito caducou, sem resultados. Temos sérios problemas de cultura institucional que atrasam decisões e a sua implementação. Acredito que uma parceria estratégica entre o regulador e a associação representativa das seguradoras pode produzir efeito útil. 

Muito recentemente, foi criada a comissão da reforma e do direito. Como olha para este processo?

Espero que a actual comissão da reforma saiba primeiro olhar para trás, para tentar perceber os aspectos positivos e negativos do que já se fez e as respectivas razões. A reforma da justiça é das reformas mais lentas que há neste país. Ela já começou há muitos anos, outras reformas foram concretizadas com sucesso ou com relativo sucesso, e exemplifico com a reforma tributária. Há anos, em matéria fiscal, não tínhamos quase nada a não ser a tributação do sector petrolífero e muito pouco mais. Mas houve um sério investimento em relação ao tema e temos uma realidade completamente nova, com o surgimento de uma Administração Tributária que antes não existia, com quadros em crescente formação, bem como um ordenamento jurídico-fiscal relativamente completo e coerente.

Encontra razão para a lentidão da reforma da justiça?

É mais um tema de cultura institucional dominante no país, a qual tem de mudar rapidamente. Os processos arrastam-se com muita lentidão e não há modelos de acompanhamento adequado, sendo que aquilo que era suposto fazer está decidido só num plano muito estratégico e não se concretiza. Ter a pretensão de fazer a reforma da justiça e do direito, ao mesmo tempo, entendendo-se este de modo muito amplo, foi um dos grandes erros das passadas comissões. Eu diria que são duas coisas completamente diferentes. Se continuarmos a pensar em querer, numa comissão da reforma da justiça, fazer também a reforma do direito, com a extensão já feita no passado, o resultado é o insucesso. É muito investimento e esforço em tempo que se perde. É preciso que a reforma da justiça se cinja àquilo que é essencial: a componente orgânica e estrutural da justiça em que já há bastante evolução, das normas de natureza processual, visando maior simplificação dos processos sem perda das garantias dos direitos das pessoas envolvidas nos processos. E relativamente ao direito substantivo, aquilo que não são normas de procedimento, a reforma da justiça deveria limitar-se às chamadas normas de instrumentalidade necessária. O que é isso? São aquelas normas que são aplicadas exclusivamente nos tribunais. O Código Penal, as normas sobre a cessação dos arrendamentos e despejos, apenas aplicadas através dos tribunais. Aquelas normas substantivas sob o despejo que estão relacionadas com o contrato de arrendamento. Agora, porque é que a reforma da justiça vai alterar parte significativa do Código Civil, por exemplo, o contrato de compra e venda?

E porque é que não?

Quando eu compro um jornal, entregando um valor e receber o produto, acabei de fazer um contrato de compra e venda; quando entrego um valor e recebo uma viatura acabei de fazer um contrato de compra e venda. E, quando dou um valor e recebo uma casa e assino um documento, acabei de fazer um contrato de compra e venda. Ora, a maior parte dos contratos de compra e venda é feita todos os dias e por todas as pessoas, sem necessidade de intervenção da justiça. Porquê fazer uma reforma de normas dessa natureza, dentro da comissão da reforma da justiça? Não é imprescindível e perde-se o foco. Há muitos departamentos ministeriais com legítimos interesses e competências para tratar de outras matérias a reformar e, para isso, as universidades e essas instituições podem fazer parcerias com sucesso. Por outro lado, acho que é preciso fazer-se desaparecer aquela ideia que predominou durante muito tempo, de que realizar a reforma da justiça é alterar leis, não é. A reforma significa, independentemente do que referi, a formação das pessoas, integrantes de todas as instâncias que interferem na administração da justiça, como os tribunais, as procuradorias, os advogados, as polícias, incluindo os funcionários ligados a essas instituições. As instalações, o equipamento, a informática, a estatística, que é fundamental para as tomadas de decisão, e finalmente a gestão. É preciso que haja formação em gestão para que haja adequada gestão dos tribunais. 

Recentemente, o Conselho de Ministros aprovou a alteração da lei do processo constitucional que poderá restringir ainda mais a natureza dos processos susceptíveis de recurso no Tribunal Constitucional. Que opinião tem sobre essa matéria?

Não tenho toda a informação relevante sobre o assunto até porque se trata apenas de um projecto em discussão nas instâncias competentes e que está a ser objecto de abordagens a nível dos especialistas em Direito Constitucional, da academia e dos juristas em geral. A propósito, espero bem que o objectivo não seja o de limitar as competências actuais do TC para a apreciação de processos feridos de inconstitucionalidade, impedindo os recursos das decisões neles tomadas. Nem me parece que assim seja. Aparentemente, pretende-se dar uma diferente configuração ao regime jurídico do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, estando em discussão se devem ou não ser esgotadas as várias instâncias da jurisdição comum antes do recurso ao TC, se o recurso deve ter efeito suspensivo ou não, de modo a que a decisão alegadamente inconstitucional fique suspensa e não possa ser aplicada ou se as decisões tomadas pelo TC podem ser imediatamente aplicadas ou se, ao contrário, devem ser objecto de reformulação prévia e correcção pelo Tribunal de que se recorre. Em todo o caso, mesmo que não seja impedido o recurso para o TC de qualquer decisão, trata-se de temas de grande importância teórica e alcance prático para os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que é preciso assegurar em nome da ideia fulcral ínsita na Constituição da protecção da dignidade da pessoa humana.

PERFIL

Licenciado em Direito, pela Universidade Agostinho Neto, em 1985, Manuel Gonçalves foi o primeiro bastonário da Ordem dos Advogados de Angola. Foi membro da Membro da Comissão de Reforma da Justiça, nomeada em 2003. Entre outras, desempenhou a função de Pca da Ensa entre 2010 e Novembro de 2019 e teve também passagem na banca, desempenhando o cargo de vice-presidente da mesa de assembleia do BAI e também do ex-Besa.