“Não deveria haver indemnização para despedimentos sem justa causa, deveria ser proibido”
Seria necessário acumular vários anos dos quinze de vigência da anterior Lei Geral do Trabalho para igualar o número de despedimentos registados nos três primeiros da actual lei. É uma das constatações do jurista que sublinha ainda que a Constituição fere o princípio da coercibilidade do vínculo laboral.
O que é uma associação de juristas do Direito do Trabalho?
A JUTRA foi criada por professores, cientistas e juristas especializados em trabalho. Foi pensada no sentido de criar momentos para a discussão de matérias sobre o Direito do Trabalho. Ou seja, a JUTRA tem, como essência, a defesa do Direito do Trabalho. Não se deve confundir com o defender os trabalhadores ou os empregadores, mas sim o Direito do Trabalho. Existe uma diferença entre o Direito do Trabalho e as leis que regulam a matéria laboral. O nosso interesse é fazer ciência, pegar em normas laborais e discutir sobre elas, ver se vão ao encontro dos princípios gerais do Direito do Trabalho. É olhar, por exemplo, para a norma que diz que o contrato de trabalho é celebrado conforme as partes melhor entenderem, que é a do artigo 6º da Lei Geral do Trabalho (LGT) e ver se ela está conforme. É pegar na norma que diz que o contrato laboral pode ser celebrado por tempo determinado ou indeterminado, dependendo da vontade das partes e nós, a JUTRA, discutirmos e, como resultado, mostrar qual é a melhor interpretação.
Foi impulsionada pela suposta existência na LGT de normas que ferem os princípios do Direito do Trabalho?
Não. A JUTRA foi pensada antes da entrada em vigor da nova Lei Geral do Trabalho.
Mas existem muitas normas em conflito com o Direito do Trabalho?
Existem várias normas. Dei vários exemplos e posso repeti-los. Temos o caso da que diz que o contrato de trabalho pode ser celebrado, conforme as partes entenderem. Ou seja, pode ser por tempo determinado ou indeterminado, dependendo da vontade das partes. Esta norma conflitua com os princípios do Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho determina que a regra geral da contratação é a por tempo indeterminado. O tempo determinado tem de ser uma excepção em homenagem a vários princípios que o Direito do Trabalho consagra, que são o princípio da continuidade do emprego, da estabilidade do emprego e da continuidade das relações empregaticias. Esta norma, em concreto, conflitua com os princípios basilares do Direito do Trabalho. É, por exemplo, o princípio da protecção. O Direito do Trabalho é criado e tem, como objectivo, a protecção da parte mais débil da relação laboral. Existindo uma norma que diz que o contrato é celebrado pela forma que as partes quiserem estão a afastar de imediato a obrigatoriedade da protecção do trabalhador. O interesse é que o trabalhador tenha uma relação contínua e se há um corte nesta relação, então já não estamos a proteger a parte mais débil. É verdade que existe o princípio da liberdade contratual, mas este princípio, em Direito do Trabalho, deve encontrar restrições porque, em Direito Civil, existe igualdade das partes de facto, mas no Direito do Trabalho não, porque o empregador tem poderes, e o trabalhador, como tem interesse de ser contratado, vai em posição de desvantagem.
Essa norma resultou da distracção do legislador ou foi dolosamente criada?
A JUTRA entende que o Direito do Trabalho foi beliscado, que a norma não está conforme os princípios do trabalho. No que toca à posição tomada pelo legislador, ninguém melhor que o legislador para responder porque é que ele entendeu que a norma devesse ter aquela configuração. Seria um pecado nós querermos afirmar qual foi o ânimo do legislador. Podemos dizer que pecou, porque não atendeu ou não teve a atenção devida aos princípios gerais do Direito do Trabalho.
Há outras normas em conflito com o Direito do Trabalho?
Há sim e aqui posso ser um pouco mais ousado e falar sobre a violação do princípio da coercibilidade do vínculo laboral. O que é que se quer com este princípio geral do Direito do Trabalho, que quer, em respeito ao princípio da protecção, sempre que exista a extinção da relação de forma contrária ao que determina a lei e os princípios do Direito do Trabalho, deve esta relação, obrigatoriamente, ser recuperada. Esta relação deve voltar a existir, mas não reiniciar de onde parou, mas sim como se nada tivesse existido. Qual é a explicação? O Direito do Trabalho quer a protecção do trabalhador. Pode existir extinção da relação laboral por causas objectivas, por exemplo, a morte. Pode haver por vontade das partes. Como também existe por iniciativa de uma das partes que opõe a vontade da outra. Entretanto, esta iniciativa de uma das partes ou contra a vontade de uma das partes, representa o seguinte. Sempre que o trabalhador entender que vai extinguir a sua relação, deve fazê-lo com aviso prévio e fundamentada para ter salvaguardado os seus direitos. Todavia, quando o empregador entender extinguir, deve fazê-lo mediante um processo. O que é que diz a Constituição? Que o despendimento deve ter como fundamento a justa causa e a LGT diz a mesma coisa. Ou seja, diz a Constituição que o despedimento sem justa causa é ilícito e, como consequência, deve haver uma indeminização. A LGT diz que o despedimento que não tenha o fundamento de justa causa tem a sua ilicitude e, se não correr com a tramitação correcta, o despedimento vai ser declarado nulo. Se não tiver justa causa, vai ser declarado improcedente. Tudo isso para dizer que corrobora com o que diz a Constituição.
E está errado?
Quer a Constituição, quer a LGT pecam, porque o princípio da coercibilidade do vínculo empregatício diz que, havendo uma cessação relação laboral por motivo imputado ao empregador que não siga em rigor aos princípios do Direito do Trabalho, esta relação deve continuar. É a famosa reintegração. Só que a Constituição foi a primeira a afastar o princípio da coercibilidade no vínculo. Antes de 2010, o princípio fazia sentir-se de forma rigorosa porque a norma dizia, “é proibido o despedimento sem justa causa”. Não havia qualquer outra expressão. A Constituição de 2010 diz que o despedimento sem justa causa é ilícito. Aparentemente só mudou a terminologia, mas não, porque ela diz que é ilícito e depois continua dizendo que dá lugar a uma indemnização. A constituição não deveria prever uma indemnização para os despedimentos sem justa causa, deveria dizer é proibido e ponto. Ao substituir a proibição por uma indemnização, está a dizer que pode despedir porque o trabalhador vai ser indemnizado, mas o interesse não é este, mas sim a continuidade da relação do trabalho. A Constituição afasta o princípio da coercibilidade e a LGT só veio dar sequência, porque diz que o despedimento sem justa causa é improcedente, paga-se a indemnização. E que o despedimento que não esteja assente nos princípios que norteiam o direito disciplinar é nulo.
Mas a lei fala em reintegração, não?
É verdade que a lei faz um desenho um pouco maior e mais bonito, que é vai haver uma reintegração, entretanto fica sem sustentação, porque, na Constituição, ela é substituída pela indemnização. Permite que o empregador diga, “eu não quero reintegrar o trabalhador”. Quando, normalmente, a decisão de não reintegração não pode caber ao empregador justamente pelo princípio da coercibilidade do vinculo. Os vínculos devem continuar mesmo que seja de forma coerciva. É isso que o Direito de Trabalho impõe. Começou a relação, se quiser terminar faça-o dentro dos limites impostos pelo Direito de Trabalho, porque existem a figura de extinção.
E o que diz esta figura?
O Direito do Trabalho diz que a relação começa com a celebração do contrato de trabalho e ela extingue. Pode extinguir pela morte, uma causa objectiva. Por vontade das partes e ainda por vontade de uma das partes que se opõe à vontade do outro. Justamente é a questão do despedimento, da rescisão por parte do trabalhador. O Direito do Trabalho apresenta todas as figuras, cabe ao legislador olhar para o que diz o Direito do Trabalho para poder legislar de forma correcta. Se eu legislador contrariar o próprio do Direito, estou a atropelar os princípios, mas os princípios são anteriores às normas.
A redução da percentagem a ser paga pelo empregador nos casos das indemnizações é outras questões que levantou muita polémica.
Nós, enquanto JUTRA, a nossa intenção é sentarmos sempre que for necessário para debater temas de Direito de Trabalho. Todos eles vão ser lavrados em acta, teremos as nossas conclusões e vamos publicar sempre para ajudar o legislador a repensar na forma de legislar e nas normas que estão em vigor. Quiçá, rever as que não estejam em inconformidade com os princípios. No que toca às indemnizações, também existe contrariedade com os princípios do Direito do Trabalho, justamente por causa das várias teorias que se põem. Uma delas é qual é a necessidade que teve o legislador? Essa pergunta é que nunca se vai calar, em caracterizar os tipos de empresas para efeitos de indeminização. A Lei 30/11 classifica as empresas em micro, pequenas, médias e temos também as grandes. As grandes empresas indemnizam de uma forma, as médias de forma menor, as pequenas, menor ainda, e as micros bem menor ainda. As quatro tipologias têm obrigações de indemnizar diferentes. Entretanto, no acto de receber a prestação da actividade do trabalhador não existe qualquer distinção, porque o legislador não teve o cuidado de dizer que o trabalhador da microempresa só trabalhar até x horas, por exemplo.
A JUTRA não colhe a ideia de que esta lei foi pensada também no sentido de criar um melhor ambiente de negócios e, sobretudo, estimular os trabalhadores a dedicarem-se mais?
Nós preferimos pensar na configuração em que a lei foi aprovada e várias vozes se levantaram neste aspecto que disse, que é aumentar a motivação dos trabalhadores e atrair investimento. Podemos ter todas as justificações possíveis, mas a verdade é só uma. Desde a entrada em vigo da Lei 7, já foram realizados mais despedimentos do que na vigência da Lei 2 que vigorou por 15 anos. O Ministério deveria ser convidado a apresentar uma estatística sobre isso. Mas, atenção, não digo no rigor da palavra, que, durante 15 anos, houve menos despedimentos que em três anos. O que estou a dizer é que durante os 15 anos de vigência da lei anteriores, os três primeiros anos, nós não conhecemos tantos despedimentos, como conhecemos em três anos de vigência da Lei 7. Podemos cumular muitos anos da Lei 2 para chegarmos ao nível de despedimento em três anos de vigência da nova LG T.
Não colhe a ideia de que foi para atrair investimento?
Se atrair investimento significa permitir que haja atropelos ao Direito de Trabalho, então era mais fácil mudarmos a configuração do Direito do Trabalho, que é impossível. O que de bom podemos descortinar disso é que devemos reflectir sobre as normas e sobre os interesses do próprio Estado. Atropelar o princípio da dignidade da pessoa humana, atropelar, em todo, o que é a configuração natural das coisas é um pouco muito, a expressão é mesmo esta, assustador quando nós estamos a falar de alguém que vende a sua força de trabalho em troca de um pagamento. Tem de haver um respeito excessivo, porque atrair o investimento não significa desprezar o ser humano. Vários países viveram crise económica, querem atrair investimentos mas não alteram a configuração da legislação do trabalho completamente. O que fazem é criar medidas que visam favorecer mas sem atropelar os fundamentos do Direito do Trabalho. Há um artigo ou outro que pode ser alterado e devem ser consultados os especialistas nessa matéria, porque o maior perigo de todo é convidar pessoas sem perícia a pensarem matérias de especialidade. Isto é matéria de especialidade e, em Angola, existem vários professores do Direito do Trabalho, temos juízes e procuradores do Direito do Trabalho. São estas pessoas que devem ser chamadas para se pensar e legislar matéria laboral. Não pode ter havido uma alteração tão profunda a pensar na atracção do investimento.
Está a dizer que os especialistas não foram consultados?
O que estou a dizer é que os especialistas todos discutem sobre a lei e discordam de quase tudo que é semelhante. Traduzindo, os especialistas têm pensamento uniforme e discordam das mesmas coisas. Qual é interpretação? Justamente que não foram chamados, porque se não teríamos um pequeno grupo e não todos a reclamar a mesma coisa.
As normas que atropelam os princípios do Direito do Trabalho justificam a revisão da lei?
Com a gravidade que tem, nem que fosse uma única, deveria ser revista aquela norma. Foram alteradas situações específicas, porque todo o resto mudou apenas o número do artigo. O que mudou foram situações pontuais mas não conforme aos princípios.
Acredita que a lei será alterada?
Esperamos que sim, acreditamos em Deus e rezamos que os homens pensem em alterar.
Falou do excesso de despedimento. Não se pode imputar esta situação à crise apenas?
Há uma professora especializada em Direito do Trabalho que disse que“a crise económica não é fundamento para despedimento”. Vou dar um exemplo de países que sofreram uma crise parecida ou pior à nossa e que lançaram mãos em instrumentos como acordos colectivos de trabalho, contratos colectivos para poder resolver a questão da crise económica. A crise afecta directamente o empregador e a consequência normalmente é o despedimento, porque ele tem redução de liquidez e despedindo vai tentar equilibrar as despesas e as receitas. O Brasil, por exemplo, na altura em que viveu a crise não alterou a Consolidação das Leis Trabalhistas (que equivale a LGT). O que fizeram foi buscar outros instrumentos e os empregadores faziam acordos para se encontrar o meio-termo para não encerrar a empresa e despedir toda gente. A configuração actual da nossa LGT deixa um pouco abalado o princípio da dignidade da pessoa humana, e digo um pouco em respeito a quem pense o contrário, porque se não diria muito.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...