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JOSÉ ALBERTO SOFIA, PRESIDENTE DO CODEX ANGOLA

“O Codex deixou de receber a dotação orçamental há mais de dez anos”

28 Oct. 2020 Grande Entrevista

O Comité para o Código Alimentar em Angola (Codex Angola) precisa de reformas profundas, defende o seu presidente que também responde pelo Laboratório Nacional de Qualidade (Lancoq). Mesmo na conjuntura actual, diz-se “animado para encontrar soluções” que coloquem o órgão sob carris em defesa dos objectivos para os quais foi criado. O Codex deixou de receber um milhão de dólares por mês para a sua manobra.

“O Codex deixou de receber a dotação orçamental há mais de dez anos”
D.R

O Codex Angola é um órgão estagnado?

O Codex Angola é uma instituição criada por um decreto presidencial em 2003, cuja atribuição é a criação de normas de qualidade dos alimentos e o incentivo ao cumprimento da execução dessas normas. Outra atribuição tem que ver com o incentivo da criação de estruturas de controlo de qualidade alimentar.

 

Mas essas funções não são sentidas pelo cidadão…

Essas actividades estão inseridas no sistema de segurança alimentar na sua componente de salubridade para permitir que todos os alimentos garantam segurança e saúde ao consumidor. Embora o Codex Angola seja uma entidade de direito angolano, a sua actividade insere-se naquilo que é o Codex Alimentarius do mundo, instituição internacional criada pelo Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com o propósito de harmonizar as normas de referência que determinam a qualidade dos alimentos e as práticas comerciais ligadas aos alimentos.

 

A quem se subordina?

No espírito do decreto presidencial,  é uma entidade multidisciplinar e multissectorial. Integra vários ministérios e, em termos de coordenação, integra uma presidência é assumida pelo Ministério da Indústria e Comércio e um secretariado executivo que funciona sob tutela do Ministério da Agricultura.

Isso não dificulta a gestão?

Fui nomeado há cerca de um ano numa conjuntura de mudanças profundas do sistema de organização governamental. Portanto, a minha gestão acontece no âmbito destas reformas de organização e funcionamento do Estado. Assim, as questões que se colocam ao Codex inserem-se em dois âmbitos principais: um é a necessidade de reforma estatutária para que seja uma entidade mais dinâmica, mais adequada a dar resposta aos problemas actuais. Outro tem que ver com o suporte orçamental do Estado, e porque comparticipava na execução de vários programas e projectos do Codex Mundo da FAO e da OMS, no âmbito da segurança alimentar, o Codex Angola também tinha o suporte financeiro dessas instituições internacionais. Mas, infelizmente, cessaram todos os apoios.

 

Daí a deriva do Codex, não?

São questões que não domino, porque ainda não tinha sido nomeado. Mas ficou sem apoio financeiro público e internacional para funcionar. São essas questões que justificam uma reforma estatutária para que o Codex possa funcionar. Além disso, também tem uma constituição bastante complexa e pesada. Devo mesmo dizer que, em termos de participação activa desses sectores no funcionamento do Codex, tirando os ministérios de tutela (Comércio e Agricultura), o resto não se faz sentir.

 

Quais são os outros órgãos que entram na sua estrutura?

Estou a falar em mais de 20 ministérios que integram o Codex. É muita componente infra-estrutural, o que também não facilita a coordenação e execução de tarefas. Daí a necessidade de mudanças profundas.

 

Já há sinais para essa 'revolução'?

Em princípio, estamos a trabalhar no sentido de identificar o que seriam os activos e o foco para que o Codex funcione. Independentemente desta conjuntura pouco favorável para uma dinâmica funcional satisfatória, a presidência do Codex, desde o ano passado, incluiu no seu plano de accões tarefas essenciais, visando definir o quadro alimentar e nutricional do país.

 

Ou seja…

Refiro-me, por exemplo, à redefinição daquilo que é a cesta básica de Angola. Enquanto Codex, entendemos que a actual cesta básica não representa os hábitos alimentares nutricionais das nossas populações.

 

Porquê?

Sabemos que, em termos de cultura alimentar, há padrões étnico-regionais. Por exemplo, se me perguntar a cesta básica da região bacongo, não vai faltar o funge de bombó, a fumbua, a mandioca, como pão, no lugar do pão. No entanto, se formos para o Sul, vamos encontrar também um outro regime alimentar e assim sucessivamente por várias regiões.  A cesta básica é tida como referência que o Governo tem para direccionar os programas de segurança alimentar.

 

Então qual deve ser o critério?

Se formos naquela que se chama ‘Angola real’ e dissermos que as pessoas devem comprar pão para comer, se calhar, não é o hábito alimentar deles e essa informação não será, obviamente, bem recebida. Então, é preciso um estudo em todo o território para se saber qual o regime alimentar básico das populações, numa primeira fase. Mas quando falamos de segurança alimentar a componente nutricional é elementar.   Podemos alimentar-nos, mas, nutricionalmente, continuamos pobres. A avaliação nutricional é crucial para uma alimentação saudável. Havendo desajustamento, promovemos programas para ajustar o suprimento do défice de proteínas, introduzindo culturas para enriquecer a dieta.

 

E no caso de alimentos importados?

Temos de identificar nos produtos alimentares de importação os de maior impacto na segurança alimentar das populações. Ou seja, o que é mais consumido e que se estiver em falta pode provocar desequilíbrios na balança alimentar do cidadão. Depois, é preciso definir normas de qualidade desses produtos para poderem entrar no mercado.

 

Como assegurar que os alimentos que entram no país têm qualidade?

Sabemos que muitos desses produtos nem sempre chegam em condições de salubridade para não colocarem em causa a saúde dos consumidores.

 

Há instrumentos adequados para aferir o que é bom e mau para consumo?

O Codex é uma entidade normativa, portanto, não tem laboratórios. Por isso, a produção de elementos científicos para a concepção dessas normas requer o recurso às instituições laboratoriais de controlo de qualidade. Por outro lado, a busca de informação requer a intervenção de técnicos e cientistas específicos para fazer o levantamento do que tem de ser importado. Tudo isso requer um suporte financeiro que não existe.

 

Quer dizer, sem dinheiro não há trabalho…

Estamos a tentar encontrar soluções, mas, na actual conjuntura pandémica, não está a ser fácil. Temos sérios constrangimentos. Porém, é preciso encontrar saídas para esses inconvenientes e não estamos parados. Estamos a lutar, porque temos uma missão e um dever a cumprir.

 

Qual é o valor necessário para alavancar o funcionamento do Codex?

Na altura da minha nomeação, a informação que obtive dos antecessores é que havia uma dotação orçamental do Estado equivalente a um milhão de dólares por mês, que deixou de receber há mais de dez anos. A esse valor se agregavam outros suportes financeiros de projectos internacionais que eram acometidos ao Codex. Nas relações com entidades congéneres de várias áreas científicas  que, directa ou indirectamente lidam com essas tarefas, é preciso celebrar protocolos de cooperação científica e técnica para execução dessas tarefas, mas antes de tudo o que é necessário  é fazer o trabalho de casa, ou seja, a reforma estatutária.

 

Trata-se de um processo que já arrancou?

Por orientação superior e sob coordenação da Casa Civil do Presidente da República, o processo foi iniciado em 2018. Nesta altura, fez-se o primeiro exercício de reforma, mas não foi concluído. Assumimos ao processo na continuidade, cujo fim depende da conjuntura actual. Não adianta estabelecer prazos, não estaria a ser sério, nesse contexto financeiro, de queda do preço do petróleo, da actividade económica e da propagação da covid-19. O importante é que não estamos numa situação de desistência, mas de continuidade de todo o processo com todas as limitações existentes.

 

Nesta altura, um milhão de dólares por mês dava jeito para pôr toda a ‘máquina’ a funcionar, não?

Um milhão de dólares serviu em 2003, portanto, há 17 anos. Foi uma conjuntura, que terá determinado esse valor. No actual contexto, é necessário que se faça um novo levantamento, conformando à realidade, para levarmos a bons termos as tarefas.

“O Codex deixou de receber a dotação orçamental há mais de dez anos” 

Pela sua especificidade, o Codex não devia agregar um laboratório?

O Comité do Codex é integrado por vários comités técnicos específicos para determinados projectos específicos. O Lancoq é membro do Codex, preside a alguns subcomités do Codex. Enquanto membro, cumpre com a sua tarefa e comparticipa naquilo que são quer do ponto de vista de análise e concepção de projectos quer do ponto de vista de suporte laboratorial. No âmbito do Ministério da Indústria e do Comércio, o presidente do Codex acumula funções de director geral do Lancoq.

 

É como se diz ‘juntar o útil ao agradável’...

O objectivo foi exactamente facilitar essa conexão de tarefas entre o Codex e o Lancoq. O Lancoq é um órgão de carácter regulador e de controlo da qualidade.

 

Que por ser único assume o monopólio na abordagem das análises, certo?

Existem outros laboratórios públicos como da Agricultura, entre outros.

 

Também há privados, entretanto ofuscados…

Não me vejo na condição de falar dos outros.

 

O Lancoq cumpre bem a sua função, o consumidor pode confiar nas suas análises?

O Lancoq é um instituto público do Ministério da Indústria e Comércio, responsável pela aplicação das políticas de segurança sanitária alimentar na indústria e no comércio. Isso consiste no controlo da conformidade sanitária dos alimentos que circulam na indústria alimentar, rede comercial e indústria de restauração que vai desde a produção, transporte e comercialização.  No âmbito do Codex, participa na elaboração de normas.

 

O que se paga pelos serviços de análise compensa?

O Decreto Presidencial nº 179, que prevê taxas de análises laboratoriais, foi elaborado com base na comparticipação multissectorial, incluindo do sector empresarial privado. Portanto, os empresários participaram disso e, por isso, a disposição do decreto é consensual. Mas tendo em conta as alterações cambiais, com a corrosão do kwanza, o que se paga hoje pelas análises de qualidade alimentar em termos de valor já não representa grande coisa, é simbólico. Há um grande défice.

 

Portanto, advoga uma actualização do diploma?

Os consumíveis de laboratório, reagentes, produtos químicos diversos, incluindo equipamentos de protecção sanitária individual e colectiva dos nossos profissionais, têm custos completamente elevados. Por isso, os valores definidos por esse Decreto Presidencial estão ultrapassados. Assim, faz-se necessária a adequação dos valores ao nível competente.

 

O cidadão pode confiar nos produtos que consome?

Naquilo que passa pelos laboratórios e confirmado laboratorialmente, podemos conferir que é saudável. Mas a resposta laboratorial no geral está muito aquém da procura, das necessidades. Ao nível do ministério, particularmente do Lancoq estamos empenhados no programa de extensão dos nossos serviços a todo o território. Para estamos mais próximos do utente e darmos uma resposta mais abrangente.

 

Há muito produto que entra pela ‘porta do cavalo’, logo, não é inspeccionado?

Não se trata só do que entra, mas do que se produz internamente, desde a água. Vou dizer-lhe em primeira mão que estamos avançados na elaboração do programa de avaliação sanitária dos níveis de segurança na indústria de alimentos e similares para avaliarmos os critérios de avaliação da qualidade dos alimentos e, a partir daí, reforçar-se o grau de fiabilidade dos produtos elaborados internamente. Será feito o mesmo diagnóstico à rede comercial e depois à de restauração. Esse programa será feito em parceria com todo o sector empresarial. O que se pretende são alimentos seguros quer para consumo interno quer para exportação.

 

Há recursos humanos suficientes e à altura das exigências?

O Codex tem todos os serviços terciarizados, com vários subcomités com quadros que não são dessa entidade. Ao nível do Codex, tirando o pessoal do executivo, não se coloca a problemática de quadros. Mas em relação ao Lancoq, enquanto laboratório de análises é uma continuidade de um laboratório da época colonial. Até Janeiro de 2019, o Lancoq era uma unidade, onde se faziam análises de alimentos e nada mais. O imperativo da resposta nacional à solução laboratorial para assegurar a qualidade dos alimentos levou o Ministério a criar um instituto que pudesse tutelar a rede de laboratórios e suporte científico e técnico para a concepção das políticas de qualidade. Daí que o Lancoq tenha passado a instituto desde 15 de Janeiro de 2019. Está numa fase de criação para poder desenvolver a sua actividade. Já preenchemos quadros para gestão, ou seja, a nível de direcção e de chefia do laboratório.

 

Pode-se aferir que vêm aí mais laboratórios, certo?

Sim, laboratórios provinciais, municipais e unidades de amostragem. Ou melhor, unidades laboratoriais mais próximas do cidadão, das empresas e mais próximas em termos de regiões de risco, como grandes unidades industriais, postos fronteiriços como do Luvo, Santa Clara, aeroporto de Luanda, Porto de Luanda. Essas unidades têm a competência de recolher amostras para levar ao mais próximo laboratório. Algumas delas pelo volume de carga que nelas  circula  deverão ser dotadas de alguma capacidade laboratorial para testes rápidos que permitam dar resposta rápida à análise se o produto deve ou não entrar no mercado.

 

Não será muito arriscado criar mais laboratórios, quando o central tem dificuldades de acção?

Encontrei um laboratório que carecia de organização e sem uma figura jurídica formal e carente de reformas em termos de recursos humanos também. Apesar de todos os constrangimentos, assumimos acções de alguma forma atrevida.

 

Pode ser mais explícito?

Pela primeira vez, conseguimos criar equipas que nos permitiram um estudo de avaliação e monitoramento de riscos à qualidade dos produtos nos mercados, lojas e focos principais de comercialização  e com isso podemos avaliar os níveis de risco alimentar.

 

Quais foram os resultados?

Pelo menos, 60% dos produtos foram confirmados impróprios para o consumo. Esse dado, em matéria de saúde pública, é assustador, mas, graças a essa iniciativa, conseguimos ter um quadro da salubridade alimentar. Seis meses depois, o então ministro do Comércio Jofre Van-Dúnem  orientou que  interviéssemos nas médias e grandes superfícies, onde encontrámos riscos na ordem dos 44%.  Graças a essa presença do Lancoq no mercado que o sector económico despertou para a necessidade de maior observância no cumprimento das normas comerciais ligadas à qualidade dos produtos alimentares. O que verificámos um ano depois é que de 60%, os riscos baixaram para 33%. Portanto uma redução de pouco mais de 50%.

 

Os riscos hoje são mais reduzidos, os níveis de salubridade são maiores?

Nenhum país num mundo tem 100% em termos de salubridade alimentar. Se existisse, não seria necessário termos entidades de controlo de qualidade. Mas vamos trabalhar, partindo do pressuposto de avaliação de qualidade do processo de produção interna das empresas. Contamos com a colaboração dos industriais do sector da alimentação.  

 

Acredita no sucesso das reformas que coloca?

Uma coisa é a concepção e outra é o grau de implementação do programa. Podemos conceber o projecto, avaliando todos os riscos, mas, na altura da implementação, podem surgir constrangimentos. Apareceu a pandemia e colocou em causa todos os programas do Governo. Isso para não falar da queda do preço do petróleo no mercado internacional.

 

Há rumores sobre suposta circulação de arroz de plástico no mercado. Tem algum comentário?

Fomos notificados por duas vezes, recolhemos amostras, e chegamos à conclusão de que o arroz de plástico não existe. O mesmo ocorreu com um tipo de manteiga. O que se passou é a qualidade organoléctica, ou seja, a composição natural do produto. Muitas vezes, a ficha técnica que reporta a composição do produto nem sempre corresponde à realidade, depois de análises. No caso da manteiga, o teor aceite anda à volta de 80%, a manteiga em causa tinha apenas 30% de gordura. Não quer dizer que era imprópria para o consumo, mas apenas uma reduzida quantidade de gordura. Portanto nem tudo o que circula nas redes sociais deve ser tido e achado.

 

Das FAA para os laboratórios

Nascido em 1961, no Soyo, Zaire, José Alberto Sofi, médico microbiologista, formado pela Universidade Agostinho Neto, é quadro das Forças Armadas solicitado pelo então Ministério do Comércio, para, em comissão de serviço, assumir a direcção do Codex e, por arrasto, do Laconq.  Defende o reaproveitamento dos produtos impróprios para o consumo “e não queimá-los”, como tem ocorrido. “Não se deve dizer que um produto quando não serve para consumo humano já não serve para mais nada. Pode ser reaproveitado para o consumo animal, para o fabrico de adubos, entre outros fins. Portanto é uma forma de reaproveitar o investimento e não queimar dinheiro, como tem acontecido”.