Que venham mais déspotas e autocratas!

22 May. 2025 Suely de Melo Opinião

Depois de anos de uma espera que faria Matusalém bocejar e de uma pressão popular tão subtil quanto um elefante numa loja de cristais, eis que o nosso magnânimo líder da nação condescendeu em receber o líder daquele... como é mesmo o nome? Ah, sim, o maior partido na oposição. A nação parou. Ninguém sabia qual superlativo usar primeiro. “Encontro épico”, “diálogo revolucionário”, “momento que ficará para os anais da história”... tudo isso para um mero aperto de mãos e, quem sabe, algumas palavras amenas… 

Que venham mais  déspotas e autocratas!

Quer dizer, em que universo paralelo seria considerado extraordinário que o líder de um país se encontrasse com o líder da maior força oposicionista? Aqui, nesta nossa amada pátria, o evento ganhou contornos de milagre, de aparição mariana, de golo de bicicleta no último minuto da final do campeonato. As redes sociais explodiram em “finalmente!”, “já era tempo!”, “a democracia venceu!”. Quase se lançaram foguetes por um encontro que em qualquer democracia funcional seria a coisa mais banal do mundo. 

Talvez este seja o prenúncio de uma nova era de diálogo e entendimento. Ou talvez não! Talvez seja apenas mais um capítulo na nossa longa e peculiar história política. 

Mas enquanto uma parte da nação celebrava, sabe-se lá porquê, o “histórico” aperto de mãos, do outro lado do espectro ecoavam os gritos de “traição!” Os mais fervorosos, aqueles que viam no líder da oposição a última trincheira contra as hordas do poder, sentiram o chão fugir-se-lhes sob os pés. Para eles, aquele encontro não foi um passo rumo ao diálogo, mas sim um escorregão perigoso na ladeira da conivência. Os pessimistas de plantão já profetizavam o amornar da luta. Imaginavam o líder da oposição a tomar chá de caxinde e a comer ‘micates’ com o PR, a trocar sorrisos e amenidades, enquanto as promessas de combate político se esvaiam como fumaça. As tão aguardadas manifestações, que enchiam os corações de esperança de alguns e causavam arrepios a outros, seriam agora meras miragens no deserto da inacção.

É engraçado, não é? A mesma acção que para uns representa um sopro de esperança, para outros soa como um dobrar de joelhos anunciando a morte da oposição aguerrida. Essa dualidade de interpretações é, em si, um retrato fascinante da nossa complexa tapeçaria política.

Ah e não nos podemos esquecer dos bajus de plantão, aqueles seres que, com a precisão de um relógio suíço, transformam qualquer acto banal num feito épico, digno de ser esculpido em mármore e cantado em versos homéricos. Eles, como sempre, não decepcionaram. Estes não estão nem preocupados se é o início de uma nova era de diálogo, nem se é uma prova de fogo para a oposição. Preocupam-se apenas em afagar o ego do chefe. E por isso mesmo veem neste encontro uma demonstração de “clarividência magnânima” de um estadista iluminado, um visionário que, com sua sabedoria infinita, finalmente concedeu a graça de um encontro. A memória selectiva, essa velha amiga dos ‘libajus’, apagou convenientemente os anos de recusa ao diálogo, as portas fechadas, os discursos inflamados. 

Resta agora aguardar os próximos capítulos desta saga. Será que o líder da oposição se deixará seduzir pelos encantos do poder, trocando a combatividade pelas poltronas macias e os discursos inflamados pelos sussurros ao ouvido? Ou será que este encontro foi apenas uma manobra estratégica, um respiro antes de voltar à carga com ainda mais vigor? Façam as suas apostas…

Ainda esta semana o nosso ilustre líder, que outrora se recusou a cruzar o mesmo corredor que o General Brice Oligui Nguema, alegando princípios e valores democráticos, agora abre os braços, com promessas de apoio eterno e elogios que soam como uma ode à democracia gabonesa. É engraçada a metamorfose do estadista, outrora inflexível defensor da ordem constitucional, agora um entusiasta das “eleições exemplares” do Gabão. Ah, que pérola! Uma verdadeira obra de arte da diplomacia, elogiar eleições que se seguiram a um golpe de Estado, com declarações de modelo a ser seguido. Não vão aqueles com pensamentos deturpados e ideias golpistas ouvir tal proeza…

Mas não foi só isso… João Lourenço prometeu apoiar o desenvolvimento do Gabão. Um gesto tão nobre que quase nos comove... se não estivéssemos aqui, em pleno 2025, a combater uma epidemia de cólera como se fossemos personagens de um livro de história do século XIX. Se a nossa população não se hidratasse com água duvidosa, torcendo para que a próxima promessa eleitoral não seja a de que, em 2030, talvez tenhamos saneamento básico. Que alma caridosa a nossa! Desenvolvimento é o que menos temos, mas queremos oferecer… Porque o importante é a manchete no jornal: “Presidente angolano estende a mão amiga ao Gabão”. Ate porque no final de contas quem se importa com os detalhes?

Mas se pensa que se ficou por aí, ledo engano. Descobrimos nas últimas horas que afinal havia um ponto secreto na agenda de João Lourenço. O presidente da União Africana afinal foi também mediar a libertação de Bongo filho, cuja família (des)governou o Gabão por mais de meio século. Mediação bem conseguida e três dias depois do regresso de João Lourenço Ali Bongo e a sua prole aterrou em Angola. Afinal em Angola há sempre mais espaço para mais ditadores e mais corruptos, não é mesmo?


*Crónica do programa Dias Andados, 16 de Maio de 2025