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ANGOLA 38 ANOS

A Era de José Eduardo dos Santos

LEGADO. Vença quem vencer as eleições de Agosto, Angola vai ter um novo Presidente da República que não se chamará José Eduardo dos Santos. João Gonçalves Lourenço é o homem que se segue, a julgar pelo conjunto de razões óbvias que antecipam uma vitória do MPLA.

O 3 de Fevereiro de 2017 foi o primeiro dia do resto da história da Angola. José Eduardo dos Santos confirmou definitivamente a sua ausência nas eleições deste ano, abrindo uma nova era do país no pós-independência. Com mais de 37 anos na liderança, dois terços dos quais repartindo a gestão do território com a rebelião da UNITA, José Eduardo dos Santos cristalizou o seu nome no topo das principais figuras da Angola independente. Muito mais do que um ano, marca várias décadas, várias gerações. É o protagonista central de todas as fases cruciais do país, nos últimos quarenta anos, dividindo o percurso de Angola necessariamente entre um antes e depois de José Eduardo dos Santos.

Com o domínio absoluto da política interna, processo iniciado com a sucessão de Agostinho Neto em 1979, José Eduardo dos Santos lançou publicamente, pela primeira vez, o tema da sucessão no dia 23 de Agosto 2001. Num país ainda em guerra, o Presidente comunicaria, numa reunião do Comité Central do MPLA, que não seria o candidato do partido às eleições que, na altura, não tinham data. A eleição legislativa viria a acontecer apenas sete anos depois, com José Eduardo dos Santos a comandar o partido numa vitória com 82% dos votos. Em 2012, com a eleição conjunta do Presidente da República e do partido no poder, por força das alterações ao sistema eleitoral, introduzidas pela Constituição de 2010, o líder do MPLA seria empossado como chefe de Estado para um mandato que termina em 2017. José Eduardo dos Santos teria alegadamente cedido a pressões internas do partido e do palácio presidencial para que não abandonasse o poder, assim como teria acontecido em 2008, quando liderou o MPLA na primeira eleição legislativa pós-guerra.

Figuras próximas do Presidente revelam, entretanto, que José Eduardo dos Santos teria planos de abandonar o poder a meio do mandato que termina, legando a liderança do país ao vice-presidente. Os seus planos terão, entretanto, gorado, por força de uma suposta forte contestação de sectores internos do partido à primeira escolha de José Eduardo dos Santos.

Desta vez, apesar da manutenção da discordância de figuras relevantes do MPLA e do círculo presidencial, José Eduardo dos Santos escapou às pressões internas e confirmou definitivamente João Lourenço, actual ministro da Defesa, como o cabeça de lista do MPLA, às eleições de 2017, e Bornito de Sousa, ministro da Administração do Território, como o candidato a vice-presidente da República.

Com o início da transição confirmada, com o controlo, desde já, das correntes de contestação internas, José Eduardo dos Santos pontua pela gestão serena de um processo sensível, impondo a sua escolha para um posto há muito desejado por várias figuras internas do MPLA.

REALIZAÇÕES POLÍTICAS

O estabelecimento da paz, em 2002, por força da derrota da UNITA e da consequente morte de Jonas Savimbi, é consensualmente destacada como a principal realização de José Eduardo dos Santos, no plano político. Várias vezes aberto a negociações, ao longo dos 23 anos que comandou a guerra civil contra a rebelião de Jonas Savimbi, José Eduardo dos Santos assinou os Acordos de Bicesse, em 1991, com o líder da UNITA, abrindo o caminho para a realização das primeiras eleições gerais em 1992. O processo eleitoral viria, entretanto, a ficar inconclusivo pela recusa dos resultados eleitorais por Jonas Savimbi que decidiu regressar às matas e retomar a guerra. Em 1994, numa tentativa de recuperação dos Acordos de Bicesse, José Eduardo dos Santos orientou o então ministro das Relações Exteriores, Venâncio de Moura, a assinar o Protocolo de Lusaka, com Eugénio Ngola ‘Manuvakola’, pelo lado da UNITA. Apesar de ter permitido a criação do Governo de Reconciliação Nacional (GURN) que juntou representantes de várias formações partidárias, incluindo a UNITA, o Protocolo de Lusaka foi incapaz de impedir a prossecução da guerra que só terminaria de forma definitiva em 2002. No discurso de fim de ano de 2001, José Eduardo dos Santos prometeu uma ‘prenda’ aos angolanos, numa alusão à aproximação do fim da guerra, depois de ter oferecido três cenários a Jonas Savimbi. Savimbi recusou a adesão ao Protocolo de Lusaka, escapou à captura e consequente entrega à justiça e acabou morto em combate.

Os momentos seguintes ao fim do conflito revelariam outra das facetas reconhecidas na personalidade de José Eduardo dos Santos: a capacidade do perdão. Apesar de alegadas pressões internas que sugeriam ao Presidente da República a condenação dos líderes sobreviventes da UNITA, José Eduardo dos Santos orientou a assinatura dos Acordos do Luena que ditaram a capitulação definitiva dos comandantes e militares de Jonas Savimbi, além de preservar as vidas destes, lançando um longo processo de reconciliação nacional que dura até hoje.

Do lado das críticas, apontam-se frequentemente as dificuldades na efectivação e garantias das liberdades civis, no contexto da reconciliação, com destaque para a liberdade de expressão e a intolerância política. Vários processos judiciais contra figuras conotadas a organizações ligadas à promoção dos direitos civis marcaram a gestão do Estado na última década e meia, com o registo de casos fracturantes que dividiram a sociedade e mobilizaram alguma solidariedade externa. O último que envolvia 15 jovens acusados de tentativa de rebelião acabaria, no ano passado, com um perdão presidencial, recurso várias vezes utilizado por José Eduardo dos Santos para devolver a liberdade a cidadãos acusados dos crimes mais diversos.

O LEGADO ECONÓMICO E SOCIAL

O volume das transformações económicas e sociais do pós-independência são o reflexo mais tangível das realizações de José Eduardo dos Santos, mas também a principal fonte da contestação interna à longevidade do seu poder. Após o longo processo de reformas, iniciado com o Saneamento Económico e Financeiro (SEF) na década de 1980 que lançaria as bases para a transição para aeconomia de mercado no início dos anos 1990, Angola teve de esperar até ao fim da guerra para iniciar o lançamento de programas económicos concretos.

No início da década passada e perante a recusa da comunidade internacional em apoiar a realização de uma conferência de doadores, à semelhança do que ocorria com outros países destruídos pela guerra, José Eduardo dos Santos virou as ‘baterias’ para a China, firmando uma relação que até hoje se revela decisiva ao crescimento da economia angolana. Envoltos, entretanto, em vários ministérios, os números do financiamento chinês seriam divulgados pela primeira vez de forma oficial, apenas em 2007, pela voz do então ministro das Finanças José Pedro de Morais que os colocou, na altura, perto dos sete mil milhões de dólares.

A reconstrução do país, com o crédito da China, daria então início por volta de 2005, tendo o Governo de José Eduardo dos Santos optado pela recuperação da rede de estradas, 70% da qual “em avançado estado de degradação”, segundo as contas do Presidente da República, no seu discurso ao ‘Estado da Nação’ de Outubro de 2010. A reconstrução privilegiou também a recuperação de pontes e pontões que, dos quatro mil contabilizados, pelo menos “dois terços estavam parcial ou totalmente destruídos”. A desminagem das várias centenas de campos, a reabilitação dos caminhos-de-ferro, a construção de escolas a todos os níveis e hospitais entraram nas prioridades da reconstrução. Até Junho do ano passado, o Instituto de Estradas de Angola (INEA) contabiliza 12.400 quilómetros de estradas recuperados e, pelo menos, 800 em construção, enquanto as pontes contruídas estavam fixadas em 233. No caso da linha ferroviária, os números estavam em 2.612 quilómetros completamente recuperados, além de 151 estações construídas de raiz, num investimento global de 3,5 mil milhões de dólares.

Favorecido pela valorização do preço do petróleo que permitiu uma taxa de crescimento média superior a 10%, até à crise de 2014, José Eduardo dos Santos lançou o mais ambicioso projecto social da sua governação, que levou à construção de novas centralidades habitacionais nas 18 províncias. Luanda, com cerca de um quarto da população angolana, viu erguidas desde 2008 quatro centralidades, resolvendo as necessidades habitacionais de dezenas de milhares de famílias angolanas.

Mas a governação de José Eduardo dos Santos, especialmente em matéria de realizações económicas e sociais, jamais gerou consensos. Além do descontrolo da corrupção, fortemente alimentada pelos recursos que inundaram os cofres do Estado entre 2005 e 2014, a sua governação é criticada por ter facilitado a criação de uma restrita elite rica, em contraponto com o estado de pobreza em que encontra a maioria da população. Às críticas somam-se a distribuição desequilibrada dos recursos nacionais, a incapacidade de promoção de simetrias regionais e a ineficiência na concretização de vários programas, que se projectam com impactos socio-económicos significativos.

À saída do poder, José Eduardo dos Santos deixa, entretanto, as bases lançadas para a consolidação de uma economia moderna, virada para a colocação do mercado no centro da realização da actividade económica, em substituição do Estado, na qualidade de operador. Observadores receosos à opção pelo actual ministro da Defesa encontram precisamente na consolidação do processo económico a maior incógnita de um futuro consulado de João Lourenço, atendendo a sua experiência governativa, mais virada para as questões militares e para a política partidária.

A INFLUÊNCIA EXTERNA

A construção da influência externa do país, especialmente no espaço da África austral e dos Grandes Lagos, teve na independência da Namíbia e no combate ao apartheid na África do Sul o seu primeiro registo mais significativo. Numa missão conjunta com o malogrado mítico líder da revolução cubana, José Eduardo dos Santos liderou o apoio externo à luta da SWAPO, de Sam Nujoma, e do Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, contra o regime racista e segregacionista sul-africano que culminou com a queda do apartheid na África do Sul e a independência na Namíbia no princípio da década de 1990.

Com a conquista do Sudoeste Africano, pelo envolvimento directo de Angola, a liderança de José Eduardo dos Santos na África austral seria reconhecida pelos seus pares, tendo-se reforçado com a derrota da UNITA, em 2002, que permitiu levar o país a novas missões de estabilização do continente, passando directamente pela República Democrática do Congo, Guiné Bissau e pela República Centro Africana.

Na RD do Congo, José Eduardo dos Santos apoiou, de forma decisiva, o derrube do regime de Mobutu Sese Seko, antigo aliado de Holden Roberto, da FNLA, e mais tarde de Jonas Savimbi, e que tinha os olhos virados para a anexação da província de Cabinda. Com a chegada de Laurent Kabila ao poder, entretanto substituído pelo seu filho Joseph Kabila, depois de assassinado, em 2001, José Eduardo dos Santos não só eliminava a ameaça expressa do vizinho do Norte à integridade do território nacional, como ditaria a influência angolana no processo político congolês subsequente até à data presente. Da RD do Congo, Angola daria o salto para a Guiné Bissau, país marcado por uma instabilidade político-militar crónica, onde seria chamada, no quadro de um acordo de cooperação na CPLP, a apoiar as forças armadas guineenses, com formação militar. A Missang (Missão Militar Angolana na Guiné Bissau) deixaria aquele país um ano depois, isto em Julho de 2012, no seguimento de acusações de sectores das forças armadas guineenses de que Angola estaria a preparar-se para intervir militarmente na Guiné Bissau. Entretanto, vários observadores colocaram países como a Nigéria no centro da controvérsia, alegadamente por receios da expansão da influência geopolítica angolana num espaço que consideram sua zona de influência.

Mais recentemente, José Eduardo dos Santos reactivou a adormecida Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), tendo, através deste mecanismo, contribuído de forma decisiva para a solução do conflito na República Centro Africana, que ficou sob o comando de Catherine Samba-Panza até Março de 2016.

O conjunto dos resultados da liderança de José Eduardo dos Santos em África e Angola viria a transformar o país num destino obrigatório de vários líderes africanos e mundiais, com o registo de passagens de figuras como François Hollande e Nicolas Sarkozy (actual e anterior presidentes franceses), Angela Markel (chanceler alemã), Hillary Clinton (ex-secretária de Estado norte-americana) e Matteo Renzi (ex-primeiro-ministro italiano).