“Nenhuma empresa séria vai entrar no país nas actuais condições”
É pragmático, com ideias concretas sobre as medidas que podem alterar a conjuntura de asfixia económica. Pedro Godinho está convencido de que o BNA pode ser decisivo, se fizer alterações ao regime cambial. E explica por que razão foi um erro não apostar-se de forma séria na refinação dos combustíveis. O empresário que, entre outras tarefas, dirige a Camara de Comércio EUA-Angola e ao conselho de administração da Prodiam, é peremptório em afirmar que, nesta fase, nenhuma empresa séria entra no mercado angolano.
Que transformações concretas a crise já causou na indústria petrolífera nacional?
Não é uma crise inesperada. Aliás, já em 2013, fazíamos questão, ao nível da USACC, de tudo fazermos no sentido de estimular a diversificação das trocas comerciais entre os Estados Unidos da América (EUA) e Angola, porque já aguardávamos esta crise. É uma crise global e dela tem surgido ciclicamente as oscilações do preço do barril do petróleo no mercado internacional e que conduzem sempre a esses fenómenos.
Quando é que os associados da Câmara de Comercio Estados Unidos de América-Angola (USACC) começaram a sentir a crise?
Os primeiros sinais [da crise] ocorreram aquando do arranque do projecto Angola LNG. Um projecto que começou a ser concebido nos anos 1990, e que, na altura, tinha, como o mercado consumidor, os EUA. Dos anos 1990 a 2014, altura em que o primeiro carregamento estava pronto, os EUA passaram de importador a exportador, ao criar uma autossuficiência em gás. Esse foi o primeiro sinal que podia dar a indicação de que, mais tarde ou mais cedo, haveria uma crise a nível dos preços do barril do petróleo, porque os EUA também trabalhavam intensamente no desenvolvimento de hidrocarboneto através de rochas xistosas. Um processo que lhes permitiria, pelo menos, aumentar a sua produção dos níveis de seis milhões de barris/dia para os 10 a 11 milhões de barris. Neste momento, o consumo do mercado americano varia entre 18 e 19 milhões barris/dia e os EUA produziam qualquer coisa como seis a sete milhões barris. Quer dizer que o diferencial entre o petróleo produzido pelos EUA e suas necessidades variavam de 11 a 12 milhões de barris. Com essa necessidade, e o diferencial entre sete e 19 milhões de baris, os fornecedores dos EUA – Angola, Venezuela, Arabia Saudita, Nigéria e tantos outros – estavam confortados.
Que impactos a crise já deixou, entre os membros da USACC, desde 2014?
O resultado natural [da crise] é reduzir pessoal, como consequência da redução dos custos. Quando se corta nos custos, começa-se pela redução das despesas. E os salários, de uma forma geral, representam de 20 a 30%, nalguns casos, noutros chegam nos 50% das despesas operacionais. Mas há empresas que não só reduziram pessoal como estão naquilo que chamamos de ‘Surviver mode’. Ou seja, hibernaram por completo. Estão sem expressão, aguardando por melhores dias, porque a situação é caótica.
Quantas associadas da USACC já se viram obrigadas a encerrar as portas?
Sem medo de errar estamos já acima de 20 empresas nessa condição [de paralisação de actividades]. De uma forma geral, a Câmara de Comércio tem acima de 100 membros. E desses devemos ter oito operadores de produção. Tudo o resto são prestadoras de serviços. Do total das associadas, 70% estão no sector petrolífero. Qualquer prestadora de serviço apresenta um problema comum: as dificuldades com o pagamento ao exterior. Umas estão com muito mais fôlego, do ponto de vista financeiro, mas a maior parte delas já está nessa fase de hibernação. É um fenómeno que levou as empresas ao tapete. Até aquelas empresas que se pareciam robustas, muitas colapsaram e abandonaram o mercado. Como balanço, essa é a pior crise. Antes, conseguíamos viajar. Hoje, os voos vão vazios. Mesmo o cidadão que, há alguns anos estava na classe média-alta, hoje não assume a sua deslocação para o estrangeiro enquanto a situação prevalecer, porque não há condições.
Tem algum exemplo concreto?
Temos casos concretos em que tínhamos cerca de 100 trabalhadores e, neste momento, só estão dois. Um para abrir a porta e outro para pagar as contas. O assunto é sério. Os membros da USACC encontram-se nessa situação. Muitos deles continuam a fechar as portas, outros conseguiram reduzir de 120 trabalhadores para dois.
É um quadro operacional deficitário, em resumo…
Não é deficitário. É de falência. É colapso. Para além dos factores de preço e a inexistência de projectos, há factores de execução de transacções, aquisição de bens e de pagamento ao exterior. Há empresas que, com a aplicação da nova Lei Cambial, exactamente com a exigência de que os residentes cambiais deviam receber os seus pagamentos em kwanzas, foram acumulando kwanzas nos bancos comerciais, sendo que muitas delas chegaram a ter acima dos 200 a 300 milhões de dólares. Com a desvalorização do kwanza acima dos 60%, as empresas não conseguem comprar bens no exterior, nem honrar outros compromissos com fornecedores.
E qual será o impacto no investimento interno?
A demonstração de que não vai haver investimento interno é que o empresariado privado nacional não está bem em termos financeiros. Poderá haver algumas excepções. Mas, com as dificuldades que há na aquisição de bens e serviços, a partir do exterior, temos de admitir e crer que não haverá [investimentos].
O quadro será o mesmo para o investimento estrangeiro?
Com esses constrangimentos, nenhuma empresa gerida por uma pessoa lúcida e séria vai entrar no mercado angolano. Quem investe fora do seu país, almeja sempre o retorno do investimento. Na condição actual, que, para pagar, por exemplo, uma peça tem de se esperar seis a sete meses, quem se vai aventurar aqui? Só um aventureiro é que se lança nisso e Angola não precisa de aventureiros. O país precisa de investimentos sérios e relacionamentos com entidade sérias. Neste momento, o ambiente de negócios em Angola não permite atrair investidores sérios.
Além da crise, o que mais está a dificultar a actividade das empresas?
A aplicação da Lei Cambial ao sector petrolífero. A nossa opinião é que se mantivesse a Lei Cambial, mas que se abrisse uma execepção. Porque essa lei, como se mostrou, funcionou muito bem quando o petróleo estava acima dos 100 dólares. Aos níveis actuais, vemos que a lei não funciona. Desse jeito, teremos uma diversificação económica de ‘faz de conta’. Para a USACC, a expressão diversificação económica passou a ser uma palavra de ordem que não vai ter impacto enquanto determinados factores não forem equacionados. Um caso hipotético: quem tem 100 milhões dólares depositados no banco, em kwanza, quando o kwanza se desvaloriza de 60 a 65%, quer dizer que está a perder 60 milhões dólares. Para empresas que tinham como perspectiva ter um lucro líquido (net profit) de 10 milhões/ano e num ano perder 60 milhões de dólares, não há condições objectivas para continuar.
Que “excepções” a USACC quer ver na aplicação da lei cambial?
Caso o BNA congelasse a imposição legal de pagar às empresas petrolíferas em kwanzas, se passássemos à fase anterior, que era o pagamento em dólar, facilitaria muito a economia do país. Enquanto o BNA estivesse a aguardar pela execução dos leilões e determinados sectores da economia estivessem em desespero, podem os bancos comerciais mexerem nas contas em dólares dessas empresas petrolíferas. A vantagem de receber em dólar é que, para fazer pagamentos no exterior, não leva seis a sete meses como agora está a acontecer. Quando for para pagar em dólar, carrega-se no botão e o dinheiro segue. Por outro lado, as prestadoras de serviços a serem pagas em dólares, poderão facilmente manter um nível de actividade de excelência que lhes permitirá tornar robusta a sua condição financeira. Se eu tiver, por exemplo, 100 milhões de dólares no banco, e por qualquer razão a moeda nacional, o kwanza, se desvaloriza, os meus 100 milhões de dólares hão-de estar lá no banco. Na condição actual [de desvalorização constante], isso não acontece.
Como é que seria executado esse processo?
A USACC sugere que se encontre um mecanismo de negociação entre o BNA e os bancos comerciais de forma a permitir que os bancos comerciais possam, em determinado momento de aflição e de crise, por exemplo, com a necessidade de importação de medicamentos, ter acesso temporário aos dólares dessas companhias e prestadoras de serviços para acudir as necessidades dos importadores desse bem. E quando o BNA tiver os leilões prontos para serem executados, faz a reposição do valor utilizado.
Essa é a saída para as petrolíferas?
Se se partisse de uma negociação, provavelmente seria uma solução, porque isso retiraria o fardo sobre o BNA. Hoje, o BNA está asfixiado. É preciso haver esses mecanismos. É certo que, do ponto de vista de imagem e da segurança do próprio sistema financeiro, se pode questionar. Quem tem os seus depósitos quer que não sejam mexidos. Ao liquidarmos as empresas prestadoras de serviços estamos pura e simplesmente a criar problemas graves à economia. A nossa economia é totalmente dependente do petróleo.
A USSAC já fez chegar essa proposta ao banco central?
Há alguma receptividade em ouvir-nos. Agora cabe a sua implementação. A nosso nível, temos apresentado as nossas propostas às instituições. Temos enviados os documentos às empresas no sentido de despertar isso. O petróleo é uma commodity que movimenta o mundo. Se o petróleo subir a níveis exagerado, vai levar a desgraça países consumidores, se baixar, também leva a desgraça os produtores. Esse produto mexe com a vida de qualquer ser humano sobre o planeta.
Disse que a diversificação em Angola não vai passar de um ‘faz de conta’. Que relação faz entre o funcionalismo da Lei Cambial e o processo de diversificação económica?
Para haver diversificação da economia, é necessário, por exemplo, o investimento interno e externo. Para haver investimento interno, temos o empresariado privado, que tem de ter a capacidade de investir. Porque, por experiência, já vimos que os investimentos do Estado, directamente na economia, não funcionam. É necessário que haja, no mínimo, uma parceria público-privada, ou o estímulo ao investimento privado. No passado, tivemos muitas empresas estatais no sector do Comércio, Agricultura, como noutros sectores da economia, que não se sustentaram. Se elas forem bem-sucedidas ou nã, vão continuar com o exercício das suas funções, porque aguardam pela injecção dos recursos do Orçamento Geral do Estado. Para actividade privada não, porque a saúde das empresas vai depender das atitudes criativas e inovadores. Isto estimula a economia. E é importante que haja o estímulo ao investimento privado.
Acredita que, no curto prazo, o país consiga desenvolver a agricultura e a indústria transformadora?
Isso depende sempre da estratégia e da atitude da nossa liderança. Enquanto província ultramarina [de Portugal], o país viveu do café. Do museu das Forças Armadas até ao Porto de Luanda, por exemplo, todos os edifícios [antigos] foram construídos com o dinheiro do café. As casas da Cabral Moncada, ao Alvalade, eram dos magnatas do café. O dinheiro do petróleo só servia para as necessidades internas e uma pequena percentagem é que era exportada. Com isso, Angola pode tão-somente viver da agricultura, da indústria, sem ter necessidade de mexer no dinheiro do petróleo.
Qual é o tempo razoável para a que a diversificação económica aconteça?
Projectos de impacto na economia levam de 5 a 10 anos. Se houver uma vontade política da parte da nossa liderança, em desenvolver esse processo de forma célere, entre 5 e 10 anos estamos estabilizados. Depende somente desses factores. Por exemplo, temos estado a esvair a nossa economia com a importação de combustíveis. Porque é que importamos, se a matéria-prima é local? E estamos independentes há 40 anos.
Quais são os custos de importação de combustíveis para o país?
Há uma dada altura, o país queimava 10 mil milhões de dólares a importar combustível e a subvencionar. Ao fazermos a análises sobre as subvenções, esquecemo-nos de que estamos somente a atacar os efeitos e não as causas. A importação de combustíveis é um dos absorvedores dos recursos cambiais. Se, por qualquer razão, o BNA disser que não tem divisas para importar combustíveis, vamos assistir aos carros e aos aviões a ficarem parados. E depois surge a ‘guerra’ das priorizações: ‘temos que fechar aqui, para priorizar ali’. Constitui alguma preocupação para a Câmara o facto de Angola ser quase uma potência em África de produção de petróleo e ainda assim importarmos combustíveis para pormos os nossos carros, aviões e outros meios a funcionar. A nossa produção anda entre 1,7 e 1,8 milhões barris/dia, mas, por incrível que pareça, ainda importamos combustíveis (refinados).
Quias são as necessidades internas concretas?
Angola neste momento precisa à volta de 110 a 120 mil barris/dia, em termos de combustíveis, e essa refinaria [de Luanda], depois de expandida e reabilitada, só consegue fornecer 50% dessa necessidade. Os outros 50% são importados. Se produzimos 1,8 milhões de barris e pegarmos em 120 mil barris enviarmos para uma refinaria local, vamos precisar de recorrer aos cambiais? Vamos precisar de importar? A refinaria paga-nos em kwanza e com os kwanzas vamos injectar na economia.
Quanto é que se gasta, actualmente, com a importação de combustíveis?
Neste momento o país está a ‘queimar’, sem medo de errar, cinco mil milhões de dólares. Já viu esse valor aplicado noutro sector? Lembram-se do ‘milagre’ que foi realizado, entre 2003 e 2004, com os dois mil milhões de dólares emprestados pelos chineses? Viu qual é o salto que o país deu, em termos os de infraestrutura, com os dois mil milhões? Estamos a falar em cinco mil milhões [que Angola gasta com importação de combustíveis]. E há dois anos, antes do corte das subvenções, estávamos a gastar 10 mil milhões de dólares. Esses valores não seriam úteis para impulsionar outros sectores da economia, como a agricultura e a indústria?
Defende que Angola deve desenvolver mais a sua refinaria?
O negócio da refinação dá dinheiro. Resolveríamos o problema do fornecimento interno, deixaríamos de ‘queimar’ os cinco mil milhões de dólares em importação de combustíveis e a refinaria a funcionar em Angola pagaria impostos ao Estado. O litro de combustível em Angola é mais caro do que na África do Sul que não produz nenhuma gota de combustível.
PERFIL
Pedro Godinho Domingos é um empresário angolano, com destaque na indústria petrolífera. Formado em Engenharia de Minas e em Gestão de Negócios, preside ao conselho de administração da Prodiam – Oil Services – empresa angolana ligada ao Grupo Veleiro. Com mais de 20 anos de experiência no sector petrolífero e serviços associados, Godinho foi quadro de companhias com referência mundial no sector, como a Chevron Texaco e a Sonangol. Pedro Godinho é ainda fluente em inglês e um respeitado palestrante sobre ‘oportunidades de negócios em Angola’.
“Esta é a maior crise jamais vivida no pós-independência”
Qual era estado económico do país com o petróleo acima dos 100 USD?
Estávamos bem. Partindo do binómio procura e oferta, quando maior é a procura, os preços disparam. Com a redução da procura, os preços baixam. E foi o que aconteceu. A partir dai deu-se o colapso. Isso verifica-se também porque, apesar desses sinais que fomos obtendo desde 2012 a 2013, falava-se muito na diversificação da economia, mas o que é facto é que, quando se verificou a baixa do preço do barril do petróleo, vimos que, em termos de diversificação, quase não há nada porque continuamos a importar quase 90% dos produtos que fazem parte das nossas necessidades. Em todos os aspectos.
…E agora com a crise?
Posso dizer, sem medo de errar, que esta é a maior crise jamais vivida na pós-independência. Porque, nem mesmo na época em que Angola foi gerida em economia de guerra, quando tínhamos o país ocupado em cerca de 50%, nunca se viveu tanta crise quanto à actual. Há produtos [importados] que vejo com certa tristeza. Até um palito de fósforo o país está a importar. Se precisar pregar uma madeira, há-de ter necessidades de importar. São coisas que, no passado, Angola já produziu. Mas são coisas que, a nível da USACC, nunca constituiu surpresa. Isso era um fenómeno esperado. Mas a situação é catastrófica.
Por que diz que esta é a mais difícil das crises desde a independência?
No passado, as pessoas continuavam a viajar normalmente, as importações decorriam normalmente. Houve um período muito crítico que foi quando atingimos uma inflação próximo dos 3000%, mas as importações e as deslocações [ao exterior] das pessoas continuavam a verificar-se. Hoje, com muita tristeza, vemos que bens de primeira necessidade começam a faltar. Esse é um sinal sério de que esta crise é forte e real. E, estando o país em crise, todos os integrantes dessa sociedade hão-de viver a mesma crise. Cada um a seu jeito, mas não acredito que alguém se sinta bem num fenómeno desses.
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