O longo caminho de procura da paz na RDC
Conflito. Na primeira semana de Julho, Luanda foi palco de um encontro entre Félix Tshisekedi, da República Democrática do Congo (RDC) e Paul Kagame, do Ruanda. Mediada por João Lourenço, nomeação da União Africana, a mini- cimeira discutiu o conflito armado no leste congolês que já dura há mais de duas décadas.
Nos novos desdobramentos deste conflito, a RDC acusou o Ruanda de financiar o Movimento 23 de Março, ou simplesmente M23, e fomentar assim a guerra no leste do Congo. Patrick Muyaya, o ministro congolês da Comunicação e Media, afirmou, em várias entrevistas, que já não havia como negar que Ruanda estava por trás do M23. O suporte das suas acusações está no facto de as forças armadas congolesas terem capturado soldados das forças especiais ruandesas armados e em território congolês. No grupo, havia inclusive dois com as fardas das forças ruandesas. Em declarações à RFI e ao canal televisivo France 24, Muyaya afirmou que os soldados foram interrogados e acabaram por confessar que haviam sido enviados, para uma missão especial à RDC.
O objectivo era atacar o campo militar de Mangabu, mas foram impedidos pelas forças armadas congolesas num momento em que se encontravam perdidos a 25 quilómetros dentro da fronteira do Congo.
Dentre outras provas reunidas pela RDC, existem imagens de drone que, segundo Muyaya, provam as possíveis ligações da melícia M23 à Ruanda. Por sua vez, o presidente Paul Kagame negou todas as acusações e rebateu com o argumento de que tudo não passava do facto de Kinsasha não estar a saber lidar com o conflito contra o M23. À televisão pública ruandesa, no mês de junho, Kagame sublinhou que os dirigentes congoleses “cometeram um grande erro na altura, pois estes problemas não são resolvidos pela força das armas e não requerem soluções militares, requerem mais soluções políticas. Eles ignoraram os alertas”, notou.
Kagame voltou a atacar quando recentemente, numa entrevista ao mesmo canal estatal ruandês, acusou o exército da vizinha RDC de colaborar com um grupo rebelde criado por alguns dos líderes do genocídio de 1994, o FDLR. E referiu que não era “aceitável que as forças democráticas para a libertação de Ruanda FDLR” fossem armadas no Congo e voltassem “para matar a minha gente”. No entanto, pouco depois e perante a impossibilidade de continuar a negar as evidências, o governo do Ruanda acabaria por assumir que os dois homens com as fardas das forças armadas ruandesas eram seus militares. Mas o porta-voz do governo fez questão de acrescentar que os militares agiram de forma individual.
O Congo, entretanto, não ‘engoliu’ as desculpas do Ruanda, assim como fez questão de criticar o “silêncio habitual” da Missão das Nações Unidas na RDC (Monusco), num momento em que o próprio organismo viu um helicóptero seu bombardeado pelo M23. Paradoxalmente, o movimento já havia sido dado como desarmado, desde 2013, pela própria Monusco.
Questionando o facto de grupos como o M23 reaparecem sempre com armamentos mas modernos, incluindo com visão noturna, o ministro congolês exigiu que a Monusco “saia do seu silencio” e explique a razão por que não denuncia “o mal assim que acontece”. “Quem tem pago o preço mais alto é o Congo”, insiste. Quanto às acusações feitas por Ruanda de que o Congo estaria a patrocinar o FDLR, Muyaya responde que são “infundadas”, lembrando que, no actual conflito, o único país que perde é precisamente a RDC. E acrescenta que a guerra só existe porque os congoleses “foram a dado momento hospitaleiros com os ruandeses”. Nas palavras do ministro de Tshisekedi, o Congo não “cederá um palmo sequer” do seu território e insiste que estão prontos a lutar por isso.
Contra Luanda
Com as relações tensas ao ponto de a RDC equacionar a expulsão do embaixador do Ruanda e “acabar definitivamente com qualquer tipo de parceria entre os países”, vários movimentos da sociedade civil congolesa, incluindo o ‘Luta pela Mudança’ e o ‘Filimbi’, os mais expressivos e influentes do país, desaprovaram a abordagem de João Lourenço de reunir Tshisekedi e Kagame em Luanda. Ambos os movimentos acreditam que já não é tempo para diálogo entre a RDC e o Ruanda ou o Uganda e apelaram ao chefe de estado congolês a “não comprometer o país com novos acordos” que, segundo eles, colocariam ainda mais em causa a soberania económica e territorial da RDC.
Em Luanda o encontro entre os três estadistas terminou com um acordo de cessar- fogo imediato. Imagens da televisão publica de angola, a TPA , apresentavam Paul Kagame e Félix Tshisekedi sentados um ao lado do outro. Nas declarações, João Lourenço destacou que o encontro foi muito “positivo”, enquanto Kagame classificava o que se atingiu em Luanda como “satisfatório”. Tshisekedi, que se tem revelado a parte mais interessada na resolução do conflito, afirmou, por sua vez, que fará tudo o que estiver ao seu alcance para avançar para a paz e retirar os seus compatriotas desta situação que já dura há 20 anos.
O M23 deu muito tempo para colocar em xeque as boas intenções de Luanda. Em declarações à BBC e a outros órgãos, Willy Ngoma, o porta-voz do movimento, negou a possibilidade de uma retirada, com uma dupla pergunta: “Retirar-nos para ir aonde? Somos congoleses, querem que vivamos sem país?”, atirou, declarando preferirem a morte ao exílio. Defendendo que a sua organização não é terrorista, Willy Ngoma avisa que a única possibilidade de um cessar-fogo tem de ser por via do diálogo directo com as autoridades congolesas, de quem esperam compreensão para as suas exigências, descartando assim qualquer engajamento com o acordo alcançado em Luanda. O governo de Tshisekedi responde, entretanto, reiteradamente que não aceita negociar com terroristas.
Informações da KST, uma ‘think tank’ que se dedica à análise da segurança na província de Kivou Norte, dão conta que a região é palco de cerca de 122 grupos rebeldes. Destes destacam-se grupos como o M23, a FDL, e o ADF, não só pelo grau de brutalidade que caracteriza a sua guerra, mas também pela robustez e armamento de ponta que possuem.
Compreenda a guerra
Em quase todo o mundo, os países com as maiores fronteiras têm muita dificuldade em defendê-las e a RDC, com os seus 2.344.858 quilómetros qudrados, é dos casos mais graves. Com um território muito aliciante para melícias, de tão rico que é em matéria prima, há mais de 25 anos que o país tem lutado com inúmeros grupos armados, que entram tanto por terra como por rio. O mais antigo e devastador dos conflitos é a chamada ‘Guerra do Leste do Congo’ também conhecida como ‘Segunda Guerra do Congo, com números incalculáveis de vítimas humanas e com prejuízos económicos inestimáveis.
A primeira Guerra do Leste começou por em 1996. Na época, o país ainda tinha o nome de Zaire. O objectivo do conflito era derrubar o então líder Mobutu Sese Seko, o ditador que terá apoiado o genocídio de Ruanda. Mobuto foi apeado por Laurent-Désire Kabila, em 1997, com o apoio dos vizinhos Ruanda e Uganda. Um ano depois, isto 1998, tentando mostrar patriotismo e força, Laurent-Kabila ordenou a retirada do território congolês de toda a tropa dos países vizinhos. Uganda e Ruanda sentiram-se traídos, o que só fomentou ainda mais o problema. Com o anúncio de Kabila pai, os tutsis temeram ser alvos dos hutus que haviam fugido para a RDC no período pós genocídio, caso estes voltassem, por isso deram o primeiro passo, invadindo a RDC. Estava assim instalada a ‘Segunda Guerra do Congo, considerada até ao momento a maior guerra na história moderna de África, ou simplesmente o conflito mais sangrento do mundo, depois da Segunda Guerra Mundial.
Tentativas para a paz
A primeira tentativa de paz aconteceu em 1999, mas sem muito sucesso, pois muitos dos grupos envolvidos na guerra não aderiram às conversações. Ruanda e Uganda começaram a lutar entre si, já que cada um queria controlar a região de Kisangani, o mais importante local de comércio de diamantes no país na época. A partir deste momento, ficou claro que a guerra era pelo controlo das riquezas minerais da RDC. Foi o ponto mais alto da guerra até aquele momento, com a envolvência de mais de 20 grupos armados. Assim, tornaram-se recorrentes os relatos chocantes de maltratos à população local, com violência sexual a mulheres e crianças, prisões arbitrárias e outras barbaridades praticadas pelos grupos armados. Entre oito e 11 países africanos estiveram envolvidos na guerra, inclusive Angola e a vizinha Namíbia. O número de mortos continua incerto, mas ronda os quatro milhões, ao passo que o de deslocados ninguém consegue precisar.
Existem teorias que apontam que a tentativa de Laurent-Kabila de desligar-se dos seus aliados ugandeses e ruandeses lhe custou a vida. Em 2001, Kabila pai foi assassinado e até hoje oficialmente não se sabe por quem. O seu filho Joseph Kabila acabou por substitui-lo com um governo de transição que passou a receber mais ajuda humanitária. Ruanda começou assim a diminuir a presença militar em território congolês, e lentamente tudo foi encaminhado para as negociações da paz com um acordo em Dezembro de 2002. Um acordo que permitiu a criação de um governo unificado e multipartidário. No mesmo ano, são assinados os ‘Acordos de Pretória’ nos termos do qual Ruanda tinha de retirar as suas tropas do Congo e desarmar as melícias hutu. Um contingente da Monuc (hoje Monusco) foi enviado ao país, mas esta ‘lufada de ar fresco’ não demorou muito tempo. Os grupos armados voltaram ao território congolês. Joseph Kabila filho lutou até onde pôde, mas, a dada alturas pareceu ter-se deixado vencer, passando a coabitar com os grupos armados.
Outros acordos foram assinados, como o de 2013 em Addis Abeba, mas novamente sem sucesso. Os grupos armados voltaram ao leste e continuaram com a guerra.
Chegado ao poder 2019, Félix Tshisekede vem anunciando o objectivo de implantar uma nova era, com a implementação de novas políticas, novos autores e também com uma preocupação mais virada para o próprio congolês. As tentativas de diálogo com os vizinhos estão longe, entretanto, de produzir os efeitos desejados, enquanto isso Tshisekede vai exigindo mais responsabilização de todos os actores da guerra. O cenário actual coloca o presidente da vizinha RDC, a um ano das eleições, a travar uma luta “nada justa” com a guerra no leste, onde o seu inimigo, apesar de conhecido, parece invisível.
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