QUANDO OS IMPOSTOS A BEBIDAS PROVOCAM REVOLUÇÕES

Revoltas de aguardente, rum e cerveja

17 Nov. 2021 Emídio Fernando Gestão

Tributação. Está escrito na História: quando um governo tenta ganhar mais com a venda de bebidas alcoólicas dá-se mal. Ou quando se mete a fazer leis que mexam nas bebidas. Já houve revoltas e revoluções por causa da ideia de aumentar impostos. Rum, cerveja e cachaça até deram nomes a revoluções.

 Revoltas de aguardente, rum e cerveja

 

Cerveja revolucionária

Em Maio de 1844, o ideólogo e filósofo alemão, Friedrick Engels, um dos ‘pais’ do comunismo científico, aventurou-se pela reportagem jornalística, mas com grande pendor social. Reportou para o semanário inglês The Northern Star a revolução na Baviera por causa do imposto sobre a cerveja decretado pelo governo alemão. Foram quatro dias de luta, contestação, revoltas que o filósofo alemão descreveu como um “acto para repor a legalidade”.

A descrição desses dias violentos até faz parte do espólio de Karl Marx que, com Friedrick Engels, desenhou a ideia económica e política do comunismo que resultou depois no marxismo-leninismo. Foi um Engels empolgado que escreveu a reportagem/opinião: “Os trabalhadores unidos em massa saíram em passeata pelas ruas, assaltando bares, partiram janelas, danificaram a mobília e destruíram tudo ao seu alcance, tudo para se vingar do aumento de preço da sua bebida favorita. O exército foi chamado, mas um regimento da guarda montada, quando convocada ao embate, recusou. A polícia, sendo considerada, em todos os lugares, malvista pelo povo, foi severamente agredida e maltratada pelos revoltosos; e cada estação ocupada antes por polícias, teve de ser ocupada por soldados que, ao estarem em melhores termos com o povo, eram considerados menos hostis e mostraram uma relutância evidente em interferir”.

A revolta terminou quatro dias depois, mas ficou como um exemplo para outras situações semelhantes. O governo foi obrigado a recuar, baixou o preço da cerveja e do imposto. Engels concluiu: “se o povo agora sabe que eles podem amedrontar o governo nos assuntos fiscais, eles logo aprenderão que será fácil amedrontá-los em assuntos mais sérios”.

 Rum imperial

A importância do rum tem um relevo na História Mundial que ainda hoje se faz sentir. Em 1764, o Império Britânico impôs a Lei do Açúcar que ficou conhecida como a Lei da Receita Americana. Só pelo nome, percebe-se que a ideia era arranjar mais dinheiro para o Estado. O preço do açúcar subiu e automaticamente subiram os preços das bebidas, em especial, as chamadas espirituosas. E, entre elas, estava o rum.

Nessa altura, a produção de rum representava uma das maiores indústrias das colónias britânicas que até rivalizava com a pirataria. Estimava-se que o consumo individual do rum, nas colónias americanas, em especial, nas 13 colónias, que iriam formar os Estados Unidos da América (EUA), ultrapassava, em média, os três litros por dia. A Lei do Açúcar viria assim atingir duramente a economia desses locais e isso já era insustentável para quem começava a defender ideias anti-coloniais.

Os colonizados britânicos, com realce para as Índias Ocidentais, já sofriam com a Lei do Selo, que não era mais do que uma carga fiscal, parecida com o IVA angolano.

O imposto sobre o açúcar, visto como prejudicial para a indústria do rum, acelerou a vontade pelas independências. A 4 de Julho de 1776, foi proclamada a Declaração da Independência de 13 estados unidos do que são os EUA.

Mas os dissabores provocados pelo rum não terminam aqui. Mesmo com a experiência mal sucedida na América do Norte, o australiano William Bligh ‘meteu-se’ com o rum. Teve a ‘brilhante’ ideia, em 1806, de proibir a bebida tradicional “como meio de troca económica”. Ou seja, como governador de Nova Gales do Sul, impediu a sua comercialização e circulação.

Foi o suficiente para merecer uma intervenção militar do Corpo de Nova Gales do Sul. O ‘Corps’, como era conhecido, prendeu o governador e conservou-o na prisão por quatro anos. William Bligh foi substituído pelo governador Lachlan Macquarie, mais amigo das bebidas alcoólicas.

 A doce cachaça

Pelos vistos, estas decisões foram tomadas sem terem em conta experiências traumáticas, como a do Brasil, por exemplo. Quando Portugal, em 1647, decidiu proteger ainda mais o seu monopólio, uma das medidas foi expulsar os holandeses que viviam em terras brasileiras. Só que eram estes precisamente que consumiam açúcar. A alternativa, para os portugueses, foi encontrada com a produção em grande escala de aguardente. Foram construídos alambiques e aumentou o tráfico de escravos, vindos de Angola, para os transportar. 

Mas uma lei de 1649 determinava a proibição de se produzir aguardente. Na prática, a produção de aguardente, ou melhor da cachaça, passou a ser ilícita, proporcionando negócios ilegais durante dois anos.

Em alternativa, o governo brasileiro exigia o pagamento de taxas elevadas, a quem quisesse produzir.

A excepção era o Rio de Janeiro, governado por Salvador Corrêa de Sá, um militar promovido em Angola desde que ganhou a batalha contra os holandeses. No entanto, nos anos que passou por terras angolanas, ajudou a promover o negócio de escravos, cuja rentabilidade dependia do sucesso da cachaça.

Situação bem diferente era vivida na Baía de Guanabara, que albergava ainda Niterói. Fazendeiros, agastados com a perda de dinheiro por causa da baixa da cachaça, revoltaram-se. A 8 de Novembro de 1660, mais de 110 fazendeiros cercaram a baía e exigiram o fim da cobrança das taxas e a respectiva devolução de receitas.

O movimento chegou ao Rio de Janeiro, mas foi ali que quebrou, terminando aquela que ficou conhecida pela Revolta da Cachaça

A capital brasileira – ainda não havia Brasília – ficou cercada, mas os revoltosos não contavam com o efeito-surpresa. A frota da Companhia de Comércio já os aguardava, enquanto as tropas do governador acabavam com a revolta.

Os líderes da rebelião foram presos e um deles, o cabecilha Jerónimo Barbalho, chegou a ser condenado à morte por decapitação. A cabeça cortada foi posta numa praça do Rio de Janeiro, como forma de aviso a quem ousasse querer repetir uma façanha idêntica. Os restantes fazendeiros foram atirados para as prisões na metrópole. E assim terminou a Revolta da Cachaça, ou, como também ficou conhecida, a Revolta do Barbalho, ou a Bernarda. Tudo por causa dos impostos à cachaça. Em todo o Brasil, a proibição de produzir cachaça ainda prevaleceu até 1695.