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Um Plano Marshall para a saúde planetária

04 Aug. 2020 Opinião

A pandemia da covid-19 aumentou a sensibilização para as falhas significativas nas nossas infra-estruturas urbanas e salientou a nossa falta de atenção ao modo como a saúde humana, os sistemas naturais e o ambiente interagem na saúde planetária. É agora evidente que o nosso sistema económico potencia a insegurança alimentar, as nossas ruas priorizam o tráfego motorizado em detrimento do exercício físico e as nossas casas aumentam o risco da transmissão de doenças. Podemos, e devemos, fazer melhor, com o lançamento de um ousado novo programa de investimento para a saúde planetária.

A ênfase quase universal na saúde motivada pela pandemia representa uma oportunidade para a mobilização de todos os sectores da sociedade na adopção de abordagens pró-activas ao bem-estar inclusivo. A construção de sistemas para a saúde resilientes e sustentáveis, especialmente no contexto das cidades e do desenvolvimento urbano, é central nesta matéria.

Na melhor das hipóteses, a incapacidade de abordar detalhadamente as implicações adversas dos actuais ambientes construídos representa uma oportunidade perdida para possibilitar comunidades saudáveis. Na pior, contribui activamente para o risco e a transmissão de doenças. No Reino Unido, por exemplo, a mortalidade mais elevada por covid-19 em pessoas desfavorecidas ilustrou a miopia de políticas de habitação que não assentem em preocupações sanitárias e ecológicas.

Uma característica positiva da crise actual tem sido a rápida adopção de medidas inovadoras (que incluem versões do rendimento universal) para atenuar o impacto económico imediato da pandemia. Isto demonstra que podemos resolver falhas sistémicas rapidamente quando existe vontade.

Da mesma forma, temos de reconfigurar radicalmente os nossos ambientes construídos para que fortaleçam a resposta imediata a pandemias e sirvam de veículos para melhorar a saúde a longo prazo. E apesar das cidades serem os principais campos de ensaio para reformas que promovam a saúde e o bem-estar, também será necessário reformar os sistemas de governação da saúde.

Embora várias iniciativas filantrópicas globais tenham tentado melhorar a saúde e a resiliência urbanas, com resultados positivos inquestionáveis, os imperfeitos sistemas actuais carecem de uma ruptura mais fundamental. Em poucas palavras, o mundo precisa de um novo Plano Marshall para a saúde planetária: algo comparável a um ‘New Deal’ para a recuperação pós-pandemia.

Este regime serve de guia global, para alinhamento de incentivos e direccionamento dos comportamentos predefinidos para a meta partilhada do desenvolvimento urbano sustentável e saudável. Necessita do acordo e da participação de governos nacionais e locais, construtores privados, investidores de organizações multilaterais, o que demora tempo. Além disso, a iniciativa toma várias formas e caminhos institucionais, alguns dos quais poderão ainda não existir.

Em particular, os governos e os intervenientes privados terão de abordar três questões: Para começar, os decisores políticos não devem encarar a resiliência apenas como um resultado final. Muitos dos choques e agressões que levam a emergências sanitárias graves e prolongadas derivam de escolhas intencionais de intervenientes locais e globais. Além da adaptação para lidar com estes choques e agressões, o desenvolvimento da resiliência tem de envolver um confronto às decisões que enfraquecem sistemas através da promoção da ruptura ecológica e da doença.

Adicionalmente, os decisores políticos têm de resolver a ‘cegueira para o problema’ que resulta da distância temporal e espacial entre a exposição aos riscos de saúde e os resultados subsequentes. Por exemplo, existe um alheamento entre o actual desenvolvimento urbano e as hospitalizações futuras devidas à asma e às doenças cardíacas, que podem ser agravadas pela exposição a ambientes húmidos e pela falta de acesso a áreas seguras para o exercício físico. Uma consequência da cegueira para o problema é a atenuação da responsabilização pela saúde a longo prazo.

Finalmente, os decisores políticos terão de abordar o ‘problema do bolso errado’, em que o sector que beneficia de uma intervenção poderá não ser o que suporta os custos da sua implementação. Isto coloca um desafio à promoção da saúde através do desenvolvimento urbano, especialmente no contexto de compartimentação de orçamentos do sector público e obriga a um redesenho do financiamento para a saúde.

As alternativas à actual abordagem ao desenvolvimento económico, baseada no PIB, já existem. O Butão desenvolveu um índice da Felicidade Nacional Bruta para orientar os decisores políticos, e a Aliança para a Economia do Bem-estar defende um sistema económico baseado no bem-estar e está a ser subscrita pelos governos da Nova Zelândia, Islândia, Escócia e País de Gales. Mas a concretização das três questões referidas exige financiamento e investimento nos sistemas para a saúde.

Neste aspecto, as instituições financeiras multilaterais para o desenvolvimento (IFMD), como os bancos Africano e Asiático de Desenvolvimento podem ajudar. Como organizações não-comerciais que proporcionam capital para projectos de desenvolvimento económico num grande conjunto de estados-membros, estas instituições ocupam uma posição única para conduzirem um regime semelhante a um Plano Marshall.

Primeiro, as IFMD dispõem das competências para reunir chefes de estados-membros e líderes do sector privado no sentido do co-desenvolvimento e da ratificação do plano, ao mesmo tempo que consideram as subtilezas regionais. Segundo, as IFMD podem condicionar os empréstimos para desenvolvimento de infra-estruturas urbanas incluídos no regime a uma análise explícita dos projectos quanto aos impactos para a saúde e às estratégias para promoção de saúde.

Nos termos do Plano, as instituições cedentes e tomadoras de crédito podem decidir o modo de mobilizar e distribuir o capital financeiro de acordo com os problemas de saúde mais dispendiosos e com quem estiver melhor colocado para prevenir doenças. Também podem explorar estratégias criativas para encorajar políticas intersectoriais e financiar projectos colaborativos que promovam a saúde humana e planetária. Uma abordagem como esta poderia catalisar ainda mais políticas públicas, tornando, por exemplo o principal indicador de desempenho de estratégias, políticas e iniciativas de desenvolvimento de infra-estruturas urbanas a sua contribuição para a saúde.

O impacto devastador da covid-19 salientou a necessidade urgente de reformas ambiciosas e abrangentes, em detrimento de medidas incrementais e fragmentadas. Um Plano Marshall global para a saúde planetária representa uma abordagem radicalmente nova e é um passo importante no sentido de assegurar o futuro sanitário das cidades em rápido crescimento. Além de financiamento e investimento dos sectores público e privado, necessita de um movimento social (liderado pelos jovens) para impulsionar a procura contínua por uma recuperação pós-covid saudável, apoiada nas ciências, artes e humanidades. Impedir as decisões tóxicas no planeamento urbano e no desenvolvimento de infra-estruturas é essencial para reduzir a vulnerabilidade às doenças, diminuir a necessidade de cuidados de saúde e conseguir melhores cidades e melhor saúde para todos.

 

Tolullah Oni, Médica de saúde pública e epidemiologista urbana, pesquisadora clínica da Universidade de Cambridge, professora da Universidade da Cidade do Cabo