ANÁLISE

Governo amealhou apenas 60% do crédito previsto

FINANCIAMENTO. Dos cerca de 19,5 mil milhões de dólares em negociação, foram conseguidos 11,8 mil milhões. Do chinês ICBC, Angola conseguiu obter apenas cerca de 27% do valor que estava a negociar. Analistas alertam para o “perigo chinês”.

 

Governo amealhou apenas 60% do crédito previsto

O resultado, em termos de financiamento, da diplomacia económica realizada no primeiro ano de liderança de João Lourenço representa uma taxa de sucesso de cerca de 60,8% face à pretensão de se conseguir perto de 19,5 mil milhões de dólares, anunciada pelo Executivo no prospecto da emissão de ‘eurobonds’ de três mil milhões de dólares.

No discurso sobre o Estado da Nação, o Presidente da República anunciou que, como resultado da “intensa e inédita campanha diplomática”, entre outros resultados, Angola conseguiu, em financiamentos, “11.2 mil milhões de dólares e mais 579 milhões de euros”, ou seja, no total cerca de 11,8 mil milhões de dólares.

Por exemplo, apenas conseguiu 27% do total que negociava com o chinês Banco Comercial e Industrial ICBC. Segundo o Presidente da República, esta instituição garantiu 3,5 mil milhões de dólares, quando, segundo o prospecto, estavam em negociações perto de 12 mil milhões de dólares.

No global, Angola conseguiu 39,4% do financiamento que negociava com as diversas instituições chinesas. Os dados apresentados no ‘estado da Nação’ dão conta que Angola adquiriu “um crédito de dois mil milhões de dólares do Banco de Desenvolvimento CDB, de 3,5 mil milhões de dólares do Banco Comercial e Industrial ICBC e de mais 620 milhões de dólares do EXIMBANK, todos da China”. Contas feitas, as diversas instituições chinesas garantiram 6,120 mil milhões quando estavam em negociação cerca de 15,5 mil milhões.

AS RAZÕES DO INSUCESSO

A má gestão dos financiamentos anteriores tem estado a ser apontada como a principal razão do recuo do financiamento chinês face às negociações anteriores. No entanto, há correntes que incluem, na lista das razões, a possível incapacidade de negociação da parte angolana, bem como uma questão geopolítica: A possibilidade de a China “enciumar-se” com abertura de Angola para outros mercados.

O analista de relações internacionais, Osvaldo Mboko, descarta qualquer ‘falhanço’ da diplomacia na negociação do empréstimo e justifica que, sendo Angola um parceiro estratégico na África subsariana, e a julgar pelos pronunciamentos de dirigentes chineses, quanto à gestão do crédito anterior, é normal haver uma certa retracção para a cedência de mais dinheiro. E admite haver hipóteses para novos créditos no futuro.

“Por não ter ‘amealhado’ o previsto, não significa fracasso do Governo”, tranquiliza o economista e professor universitário Domingos David, apelando para “mais transparência e fiscalização” na utilização desses recursos financeiros para não comprometer a Nação. “No mundo não há países sem dívidas. Mesmo os grandes como os EUA estão endividados. O mais importante é a capacidade de pagar esses empréstimos. Se assim for, no caso angolano, isso credibiliza o país e facilmente poderá ter acesso a outros financiamentos quer da China quer de outros credores.”

Israel Bonifácio, outro especialista em relações internacionais, afirma também ser “irrelevante” a aproximação de Angola aos países ocidentais na busca de financiamentos para robustecer a economia. “Angola sempre esteve ligada à Europa. Isso não ‘trava’ os empréstimos com o nosso principal credor, a China”, afirma, acrescentando: “Hoje, os chineses estão mais interessados não só nas contrapartidas, mas também na transparência”.

Israel Bonifácio entende que os chineses perceberam que, na cedência de créditos, devem ser cautelosos, sob pena de serem vistos por potências internacionais como promotores da corrupção em África e particularmente em Angola.

Bonifácio é contra o endividamento que, em vez de dinamizar o tecido empresarial, provoca falências. “O Governo está a endividar-se, mas as dívidas, interna e externa, não param de crescer. As pequenas e médias empresas continuam a fechar porque o Estado não paga. O cenário é de estagnação. É preciso olhar para o que se fez mal no passado para melhorar o futuro.”

De acordo com o ministro das Finanças, com esse dinheiro ‘fresco’, o Governo pretende ‘reduzir a pressão sobre a balança de pagamentos e o ‘stock’ da dívida, sobretudo com credores chineses’. O resto do financiamento, revelou ainda o governante, será canalizado para impulsionar projectos capazes de dinamizar a economia e reduzir a dependência das importações. Archer Mangueira também não especificou a taxa de juros a aplicar no âmbito dessa nova linha de crédito.

Dívidas ‘opacas’

Contas feitas, se ao novo empréstimo de 11.2 mil milhões de dólares, acrescentar o ‘bolo’ do FMI, com negociações em curso, o Governo pode fechar o ano com créditos acumulados na ordem dos 85 mil milhões de dólares.

O total da dívida externa do país está acima de 70 mil milhões de dólares. Desta, 23.5 mil milhões com a China, que acaba também por ser o maior ‘fiador’, desde 2002, altura em que o Estado recorreu ao primeiro financiamento (de dois mil milhões de dólares) da China, para alavancar o processo de reconstrução de infra-estruturas destruídas pela guerra.

No discurso sobre o ‘estado da Nação, João Lourenço referiu-se a novos empréstimos na ordem de 11,2 mil milhões de dólares, mas em nenhum momento da sua intervenção, de cerca de uma hora, se referiu ao formato do pagamento, ou dos juros desses bilionários ‘kilapis’.

Esta lacuna, para muitos, mancha o sentido transparente que se atribuía ao discurso devido, sobretudo, ao anúncio do valor conseguido dos financiamentos e o que se ganhou com o remanescente do petróleo. Os empréstimos anteriores, contraídos a partir de 2004, também com modalidades de pagamento ‘opacos’ serviram para reabilitação de estradas (no entanto já deterioradas), caminhos-de-ferro, construção de centralidades, bem como investimentos na energia eléctrica e águas entre outros.

Excepto o programa de financiamento adicional de quatro mil milhões de dólares, solicitado ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ainda em negociações, o reembolso dos empréstimos do Governo têm na base, o petróleo, como moeda de troca. O prospecto de Eurobonds revela que, nos últimos cinco anos, ou seja, de 2013 a 2017, Angola exportou para China petróleo no valor de 107 mil milhões de dólares. Ninguém sabe explicar se parte desse valor serviu para abater a dívida.

Falta de transparência eleva inquietações

Ao VALOR, o consultor Galvão Branco revela que empréstimos com recurso ao petróleo são “desvantajosos” por causa da volatilidade dos preços deste recurso mineral no mercado internacional. “Os créditos por petróleo não são saudáveis por causa da constante flutuação dos preços”, afirma, aconselhando que o melhor seria o país contrair créditos para potenciar a exportação de bens e serviços.

O executivo da GB Consultores levanta, como grande questão, o rácio entre o serviço da dívida interna e a receita fiscal. “O ideal seria 20% da receita fiscal canalizada para o pagamento da dívida e não mais de 100% como acontece. Se grande parte das receitas se destina a pagar dívidas está mal”, defende.

O economista Eliseu Gaspar também critica os “contratos opacos” que podem “comprometer futuras gerações e não acrescentam valor à economia”. O vice-presidente da Associação Industrial Angolana (AIA) acrescenta, por exemplo, que “pedir seis mil milhões de dólares para construir um aeroporto, nesta altura, é má ciência”, defendendo que o melhor seria aplicar esse dinheiro em pequenos projectos de distribuição de água potável e energia eléctrica às comunidades do meio rural e periurbano, construção de pontes e melhoria das vias secundárias e terciárias para o escoamento dos produtos do campo. “Os empréstimos devem servir para financiar projectos de impacto na vida dos cidadãos”, conclui.

Se o Governo diz que o FMI trará credibilidade a Angola, o empresário e economista Luís Domingos contraria, argumentando que este não é o caminho para alcançarmos o equilíbrio macroeconómico. “O recurso ao FMI pode ser uma via, mas não o fim. E se não haver cautela, pode ser um desastre. O cidadão não come belíssimas estatísticas a serem publicadas. Os financiamentos devem ter qualidade”.

 

                                                                                                                                                                                                  * Júlio Gomes