A democracia que só o embaixador americano vê
Na semana passada, o embaixador dos Estados Unidos da América em Angola prestou um tremendo desserviço à democracia. Recebido por João Lourenço na manhã de 26 de Julho, Tulinabo Mushingi ‘esqueceu-se’ que a campanha eleitoral em Angola tinha aberto dois dias antes e pôs-se a fazer avaliações positivas sobre as “reformas democráticas” em curso.
O diplomata americano não se expressou, entretanto, de qualquer forma. Fez questão de tornar o discurso enfático para se assegurar que todos percebessem correctamente a sua mensagem. “Só não vê quem não quer”, sentenciou, descontraído, ao mesmo tempo que notava a sua presença de apenas quatro meses no país.
A embaixada até se apressou a ‘rectificar’ as declarações do embaixador, através de uma nota. Mas a emenda, se não saiu pior que o soneto, ficou muito perto disso. Por um lado, porque não se demarcou expressamente das palavras que fizeram do embaixador uma espécie de cabo eleitoral do MPLA. Por outro, e mais grave, porque destacou uma alegada crença dos Estados Unidos na realização de eleições livres, justas e transparentes.
A actuação combinada do embaixador e da sua embaixada, em circunstância normal, resultaria pelo menos num escândalo diplomático. Desde logo, pela oportunidade e o contexto. Apesar de manter a gestão corrente do Estado e do Governo, João Lourenço está numa campanha renhida contra Adalberto Costa Júnior. O que significa que, em teoria, Angola pode ter um novo presidente depois de Agosto. E ainda que os americanos tenham as suas certezas quanto à manutenção do ‘status quo’, o mínimo que se exigia era algum pudor diplomático. Os temas de fundo na cooperação bilateral tinham de ser deixados necessariamente para depois.
Há também a questão das inverdades do conteúdo. O embaixador valorizou reformas democráticas que mais ninguém vê. E a embaixada vê uma oportunidade de realização de eleições transparentes que, em boa verdade, nem o próprio MPLA enxerga. Entre outros, os americanos decidiram ignorar o facto de o conjunto do processo eleitoral ser contestado de ponta a ponta. Desde a lei eleitoral, passando pelo registo até ao ficheiro dos cidadãos eleitores, a transparência de todo o processo é posta em causa, com as reclamações a entulharem-se na CNE e nos Tribunais. Repita-se: ainda assim, os americanos conseguem ver a oportunidade de se realizarem eleições transparentes. Do mesmo jeito que apontam as reformas democráticas quando a maioria esmagadora das instituições e observadores independentes, incluindo americanos, têm assinalado retrocessos assinaláveis no processo democrático. E quando o próprio partido no poder faz questão de deixar claro, vezes sem conta, que não abandona o poder de jeito nenhum.
Tudo isso leva, claro, a leituras inevitáveis. Os Estado Unidos não confundem autocracias com democracias e Angola é governada indiscutivelmente por um regime autocrático. A Zâmbia, pelo contrário, mesmo com a rigidez de Edgar Lungo, era um país com um processo democrático mais avançado à chegada de Hakainde Hichilema ao poder, em Agosto do ano passado. Ainda assim, os americanos exigiram abertamente transparência nas eleições e Edgar Lungo foi apeado. O mais provável é que Tulinabo Mushingi não se tenha, portanto, enganado. Muito menos se terá esquecido de que Angola está em campanha. A explicação pode ser outra. O lobby de João Lourenço nos EUA terá funcionado mais do que transparece. E o ‘business’, à maneira americana, impôs-se. Como sempre.
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