ANGOLA GROWING
António Neto

António Neto

DIPLOMACIA. João Lourenço livrou-se da responsabilidade de herdar a liderança de uma região de permanente conflitos civis e étnicos, com uma dinâmica política complexa que ameaçava diminuir-lhe o foco nas questões domésticas.

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Com uma agenda interna que demanda atenção permanente, João Lourenço terá confiado a um conselheiro próximo que iria transferir a presidência da Comissão Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL) ao Congo Brazzaville de bom grado.Angola livrou-se da coordenação dos dossiers regionais na semana passada, durante a 7.ª conferência de chefes de Estado da região, realizada em Brazzaville.

A passagem de pastas aconteceu precisamente numa altura em que da RDC, o membro mais instável em matéria de segurança, chegavam notícias que sinalizavam novas movimentações de vários grupos rebeldes opostos a Joseph Kabila.

Os Grandes Lagos abrangem as zonas Este e Central do continente, compreendendo o Uganda, Tanzânia, RDC, República do Congo, Burundi, Ruanda, Sudão e Sudão do Sul, Quénia e Zâmbia. Ou seja, geograficamente Angola está fora.

Único país de expressão portuguesa, a par de Moçambique lá mais para o Índico, a entrada de Angola na organização e o seu papel de coordenador foram vistos como arrojados e decorrentes mais da sua experiência na gestão do seu longo conflito armado. O processo que conduziu à paz em 2002, que exigiu um nível de diplomacia e articulação com os rebeldes, bem como a integração social dos elementos daqueles, conferiram ao país, aos olhos de alguns segmentos internacionais, pergaminhos suficientes para interagir com quem também não se entende há vários anos.

Os Estados Unidos da América e as Nações Unidas foram dois dos principais apoiantes do papel de Angola, sobretudo numa altura em que a zona andava às voltas com a praga da pirataria marítima. Aqui, relevou-se a capacidade material e humana da Marinha de Guerra do país.

“A região constitui uma complexa rede de interacções políticas e económicas com fortes implicações para questões de paz, segurança e governação”, descreve Patrick Kanyangara, da ONG britânica Accord, num estudo publicado no ano passado sobre as origens e os efeitos dos vários focos de instabilidade que grassam adentro.

Kanyangara considera que estes conflitos têm a característica comum de ligar-se a questões de governação, divisões de identidade, violência estruturada e, numa escala gravosa, na exploração e acesso desigual aos recursos do país.

Outra particularidade dos conflitos na zona reside na ligação entre si, pois raras vezes são isolados e confinados a um único país. A partilha de imensas fronteiras e o fraco controlo sobre as mesmas, além das ligações entre centenas de grupos étnicos, contribui para o carácter transnacional dos mesmos. Estas e outras condições propiciam a proliferação de grupos armados, que cruzam as fronteiras, muitas vezes com o desejo, também, de explorar recursos minerais.

A RDC será o caso mais bem elaborado onde interagem esses e outros elementos explosivos. O território abundante em diamantes, ouro, urânio e outros recursos preciosos, aliado a contestações políticas antigas, conformam um conflito que perdura há vários anos e que preocupa o conjunto das nações da zona dos Grandes Lados.

Antes, Angola esteve fortemente envolvida no processo de pacificação da República Centro Africano (RCA), nação da África Central, não pertencente à CIRGL, que entrou numa espiral de instabilidade política e militar. A intervenção de Luanda foi de tal ordem que o Governo chegou a enviar tropas e meios materiais e financeiros para garantir a segurança do regime local. Foi um cenário de profunda instabilidade quando, em 2014, José Eduardo dos Santos acedeu ao apelo dos parceiros africanos, americanos e europeus para liderar a comissão. Aliás, o então chefe de Estado angolano sabia ao que ia. Na altura, vários observadores consideraram que aceitou o desafio por mais outro motivo para além do aclamado traquejo do seu regime na gestão do conflito e pós-conflito interno. Vencedor de uma guerra como poucos e longevo no poder, Dos Santos vira na oferta a oportunidade de dar corpo à velha ambição de projectar a sua influência pelo continente, sem descurar que, no processo, estavam também os norte-americanos.

Note-se que antes, segundo analistas, JES sofrera um revés quando falhou o seu alegado desejo de reunir em privado com o então presidente norte-americano Barack Obama, à margem de uma cimeira EUA-África que decorreu na Casa Branca. Enviou o seu vice-presidente, Manuel Vicente.

SEGURANÇA ALIMENTAR. Crises climáticas e maximização da produção e do lucro são as principais razões que levam países a optar pelo cultivo e consumo de produtos cujas sementes são alteradas em laboratórios. Procedimento está longe de ser consensual. Tudo aponta que Angola os produza.

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Em 2014, a União Africana (UA) declarou aquele o ano da Segurança Alimentar, uma medida que visava erradicar a fome no continente até 2025 mediante a adopção de uma série de políticas e procedimentos a aplicar pelos Estados-membros. Uma das soluções em consideração degenerou logo em controvérsia, pois consistiria no uso massivo de alimentos produzidos a partir de sementes geneticamente modificadas, metidos, entretanto, que especialistas classificam como perigoso para a saúde humana.

A organização continental estima que cerca de 223 milhões de pessoas no continente sofram de malnutrição severa originada por períodos prolongados de estiagem ou de cheias. Esse cenário de crise social profunda levou a que vários chefes de Estado apelassem à adopção de cultivos à base de sementes modificadas em laboratórios, procedimento em voga nos países ocidentais, mas encarado com reservas. Numa conferência sobre agricultura, realizada em 2012, 24 estadistas concordaram em permitir o uso desta opção nos seus respectivos países.

Tratou-se de uma decisão política altamente controversa que a maioria dos subscritores não implementa, pois encontraram resistências a nível de vários sectores sociais e produtivos. Na África Austral, região em que Angola se insere, apenas a África do Sul adoptou e implementa o uso comercial de sementes alteradas a partir da sua genética. Outros são o Sudão, o Egipto e o Burkina Faso.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica alimentos geneticamente modificados os produtos agrícolas ou animais cuja estrutura genética natural tenha sido alterada em laboratório, processo durante o qual se introduzem na semente os genes de outros organismos. Os propósitos são vários, sendo o mais comum o de tornar a semente, planta ou animal resistente a condições adversas, como doenças e condições climáticas.

A resistência a esta variante do cultivo de produtos agrícolas assenta, sobretudo, em receios de que a mesma destrói a agricultura de subsistência, enquanto biologistas apontam os riscos da criação de monoculturas (domínio de uma única espécie), que destruiriam a biodiversidade decorrente da sua maior exposição a falhas. Ou seja, se um único cultivo se tornar vulnerável a uma peste ou micro-organismo, não haveria outras variedades para substituir.

No caso de animais, a modificação genética ocorre através da injecção de hormonas que aceleram significativamente o seu crescimento. Os frangos são disso exemplo.

Por exemplo, o Instituto de Tecnologias Responsáveis, uma ONG internacional que se dedica a pesquisas sobre o impacto das tecnologias para os seres humanos, aponta 65 riscos decorrentes do cultivo e consumo desses alimentos. No geral, classifica-os de nocivos para a saúde, em particular de crianças e recém-nascidos.

Os Estados Unidos lideram o cultivo e consumo de produtos nessa condição. Segundo o Instituto de Tecnologias Responsáveis, 92% do milho e 94% da soja crescem à base de organismos injectados nas sementes com o propósito de as alterar “e torná-los mais resistentes e saborosos”.

A realidade em Angola

Faltam informações fiáveis sobre o cultivo ou consumo de alimentos geneticamente modificados em Angola. Entretanto, em recentes declarações à rádio LAC, o director do Instituto de Desenvolvimento Agrário, organismo afecto ao Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural (Minader) informou que Angola tem importado “sementes melhoradas” de alguns países da região. Trata-se do Zimbabue, Zâmbia e África do Sul, este último o único que permite o cultivo e consumo de “alimentos de laboratório”.

“Este ano, teremos a disponibilidade de sementes melhoradas que serão usadas pelas famílias camponesas e produtores no geral. Isto levará ao aumento da produção”, referiu David Tunga.

“Sementes melhoradas” é outra designação de sementes alteradas em laboratórios. Contactado pelo VALOR, o responsável sénior do Minader recusou-se a esclarecer.

Outra fonte do VALOR alerta , entretanto, para a possibilidade de vários produtos comercializados localmente resultarem de sementes modificadas geneticamente. “Existe a ideia de que o produto nacional é melhor e mais seguro. Realmente é. Mas Angola pode estar já a consumir vários alimentos com a genética alterada”, referiu.

O especialista citou o exemplo de alguns produtos cujo tamanho e forma indicam fortemente esta possibilidade. “Não é possível termos pimentões, laranjas ou tomates tão grandes produzidos a partir de métodos apenas naturais”, observou. Alcides Caspe, do Minader, fala a respeito em entrevista neste dossier.

DIPLOMACIA. Generalidade das opiniões aponta para um desempenho positivo do novo Presidente da República na sua primeira mensagem à Nação, mas indicaram um aspecto em que o mesmo terá falhado.

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Um discurso cheio de tudo, é o denominador comum das apreciações que ainda se fazem da primeira mensagem à Nação do novo Presidente da República. Com base nesses pronunciamentos, João Lourenço terá passado no seu primeiro teste nas vestes de novo líder do país, perante os angolanos.

Se, por um lado, a balança pende claramente a seu favor, entretanto uma referência no mesmo discurso constitui o que vários observadores não hesitaram em considerar a grande mancha naquele início de tarde sem sol. A referência aos países com os quais o sucessor de José Eduardo dos Santos pensa em manter relações estratégicas teria condicionado a excelência do seu desempenho.

“Angola dará primazia a importantes parceiros, tais como os Estados Unidos da América, a República Popular da China, a Federação Russa, a República Federativa do Brasil, a Índia, o Japão, a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália, o Reino Unido, a Coreia do Sul e outros parceiros não menos importantes, desde que respeitem a nossa soberania”, ressaltou João Lourenço, numa altura em que os níveis de aprovação estavam em alta e previa-se um fim em grande.

O inusitado residirá num par de aspectos que a opinião pública considera relevantes no domínio das relações e cooperação entre Estados. O primeiro terá decorrido de uma aparente deselegância, dado que, na Praça da República, estavam presentes chefes de Estados estrangeiros que acederam, de pronto, ao convite do PR cessante para testemunharem a investidura. Não apenas os seus países não foram citados, como nenhum dos citados estava representado ao mais alto nível.

Para já, sabe-se que a diplomacia angolana teve de se desdobrar em múltiplos contactos para assegurar uma representação que se considerasse condigna, dado que Angola não figura propriamente no conjunto de países que os outros estadistas priorizariam neste momento. Por outro lado, a repercussão internacional dos protestos da Oposição aos resultados das eleições levou o poder a esmerar-se na presença estrangeira, com a qual desejava reforçar a credibilidade do processo. Crê-se, também, que o interesse económico reduzido nesses tempos de crise remete o país para o plano secundário dos destinos internacionais dos líderes das outras nações.

O destaque nesse particular recai sobre Jacob Zuma, presidente da segunda maior economia de África e maior potência económica e política da região em que Angola se insere.Nos últimos anos, foi o estadista mais chegado ao antecessor de João Lourenço, sendo que a sua ascensão a líder sul-africano quebrou a frieza e algum cinismo que caracterizavam as relações bilaterais na era de Nelson Mandela e o seu sucessor, Thabo Mbeki. Angola foi o primeiro país que Jacob Zuma visitou tão logo tomou posse, e é, na verdade, o país estrangeiro em que o político mais vezes esteve. Nenhum outro estadista veio cá em duas ocasiões numa semana em visita oficial que não fosse para escala técnica.

Politicamente, as relações eram, ou são, saudáveis.Especialistas estimam que a lacuna entre Angola e a África do Sul reside no plano económico, por conta da crise económica e financeira por que passa Angola. Em Abril deste ano, o encarregado comercial da embaixada sul-africana em Luanda estimou que as trocas comerciais com a África do Sul haviam caído em 2,4 mil milhões de dólares em 2016, uma redução de 75%.

Em declarações à RNA, Matomé Mbata sublinhou a necessidade de incremento das trocas comerciais entre os dois países, tendo em conta a sua proximidade, tecnologia e os recursos naturais. “Queremos promover e reforçar os negócios entre os dois países por três razões: a primeira, porque estamos próximos, são três horas de voo; segundo, porque temos a tecnologia, e terceiro, porque Angola tem petróleo e a África do Sul não tem, nesta perspectiva poderemos estabelecer fortes parcerias”, referiu o diplomata.

A dúvida reside se, nas actuais condições, a África do Sul merece ser incluída no conjunto de “outros parceiros não menos importantes”.

Historicamente, as relações com a República Democrática do Congo oscilam entre boas e menos boas, mas Joseph Kabila veio. Esperava-se uma referência ao país, quanto mais não seja porque as relações entre ambos é importante para impedir o alastramento para o Angola dos vários conflitos cíclicos que tem conhecido.

Outra nota sonante vai para a Côte D´Ivoire, cujo chefe de Estado também voou para Luanda com o fito de presenciar a passagem de testemunho na chefia do Estado angolano. Alassane Ouattara tinha razões políticas suficientes para declinar o convite, uma vez que Dos Santos opôs-se abertamente à sua primeira vitória para as presidenciais naquele país. Numa recepção a diplomatas estrangeiros na Cidade Alta, em Janeiro de 2011, José Eduardo dos Santos declarou que o derrotado Laurent Gbabo era o “Presidente constitucional” daquele país, colidindo com a posição defendida pelo Ocidente, em particular a França.

Fontes do MIREX indicaram que, entre os convidados africanos, Ouattara era o que menos se esperava que acedesse ao convite. Não sendo a Côte D´Ivoire um parceiro que se possa considerar estratégico, aconselhava-se, entretanto, alguma elegância e consideração políticas.

E tem Portugal, país com o qual Angola parece estar condenada a manter uma relação de amor e ódio permanente. Na manhã da investidura, o governo português confirmou a recepção de uma “carta rogatória” de Angola na qual o país voltava a bravejar por alegada violação da sua soberania. Em causa estava o anúncio, por um tribunal de Lisboa, de que o então vice-Presidente angolano, Manuel Domingos Vicente, irá a julgamento em Janeiro do próximo ano, na sequência das acusações de prática de corrupção activa.

Único estadista europeu na cerimónia, pela segunda vez Marcelo Rebelo de Sousa foi o centro de milhares de olhares naquele dia, quando João Lourenço terminou a sua “lista dos favoritos” sem que o seu país fosse incluído, depois de haver sido vivamente ovacionado na apresentação dos convidados estrangeiros de alto nível. Crê-se mesmo que a referência “desde que respeitem a soberania angolana” no discurso de João Lourenço se destinava a Portugal, em particular.

Este desenvolvimento foi anterior à proclamação por José Eduardo, em Outubro de 2013, do fim da parceria estratégica entre os dois países. Na altura, as autoridades lusas já andavam à ‘caça’ de Vicente.

O atenuante naquele momento de incredulidade residiu na projecção que o novo líder angolano antes fez sobre a cooperação internacional do seu Executivo. Lourenço prometeu conduzir uma política de aproximação aos países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), “com vista à troca de informações no domínio da segurança, para a prevenção e combate ao terrorismo”. Sobre os Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), assegurou que a relação de Angola com os mesmos estará “sempre presente”.

Tradicionalmente, equipas multi-sectoriais contribuem na elaboração e redacção dos discursos de estadistas. Não se sabe ao certo como foi o processo do primeiro pronunciamento do Presidente João Lourenço.

18 Sep. 2017

Que legado?

LEGADO. No próximo dia 26 de Setembro, João Manuel Gonçalves Lourenço estará no centro das atenções quando o presidente do Tribunal Constitucional, Rui Ferreira, lhe atribuir os adornos dourados que simbolizam o poder do Estado angolano. Mas os olhares estarão também em José Eduardo dos Santos, a figura que marcou Angola nos últimos 38 anos. Na hora da retirada, a pergunta que se impõe: o que deixa ele para Angola?

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Certamente quando José Eduardo dos Santos, na altura ministro das Relações Exteriores, tomou posse como o segundo chefe de Estado da jovem República Popular de Angola, poucos, ou mesmo ninguém, imaginaria que o jovem político começaria um reinado de quase quatro décadas, prenhe em eventos políticos e militares de toda a sorte.

Lúcio Lara, então presidente da Assembleia do Povo, acabara de empossar um líder que moldaria um novo regime angolano à sua imagem e semelhança, e marcaria a vida de toda a nação.

Nesse dia, a 21 de Setembro de 1979, o país revolucionário ainda chorava a perda de Agostinho Neto, que ,semanas antes, partira para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em tratamento médico. A indefinição, por Neto, de alguém que o sucedesse em caso de alguma adversidade, apresentou às estruturas do MPLA um dilema de proporções nada fáceis de gerir.

Vários relatos apontam o nacionalista Agostinho Mendes de Carvalho, próximo de Neto, como tendo sido uma voz preponderante entre os seus correligionários do Bureau Político do partido para a indicação de José Eduardo.

De qualquer forma, o jovem de 37 anos estava investido das mais altas funções de Estado e pronto para fazer história, num contexto de instabilidade militar.

UM LÍDER EM GUERRA

Angola emergira como um país independente em condições, de certo modo, diferentes das demais ex-colónias portuguesas em África. A realidade imposta por um processo mal gerido levou a que o país entrasse em guerra logo a seguir a 11 de Novembro de 1975. O conflito armado foi, precisamente, o maior desafio com que o novo estadista se deparou nos seus primeiros anos de governação.

Tratava-se de uma guerra de baixas proporções, sendo que a UNITA, a organização guerrilheira que se recusava a reconhecer a legitimidade do MPLA, já dispunha da Jamba como seu quartel-general, mas sem capacidade militar e bélica que pudesse, realmente, incomodar as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA). Mas a situação exigia grande habilidade e discernimento políticos de José Eduardo dos Santos.

Com o apoio político dos Estados Unidos e militar e logístico da África do Sul e do Zaire, sobretudo, a UNITA fez o conflito subir de intensidade, alastrando-se por todo o território. Apenas a capital Luanda permanecia praticamente impenetrável pelas tropas daquele que se notabilizara como um bravo nacionalista na luta contra os portugueses. Era grande o aperto militar, político e diplomático com que o novo estadista tinha de lidar.

A INDEPENDÊNCIA DA NAMÍBIA

O conflito agudiza-se em meados da década de 1980. A liderança de JES é fundamental na condução das tropas a partir de Luanda e nos preparativos ultra-secretos do que viria a tornar-se no acontecimento militar mais épico a nível de África.

A Batalha do Cuito-Cuanavale, como ficou conhecida, testou ao limite as capacidades das tropas governamentais e dos seus aliados cubanos no confronto directo com a UNITA, estas apoiadas pelo exército sul-africano do então regime do apartheid.

Entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março do ano seguinte, esta região da província angolana do Kuando-Kubango evidenciou uma das facetas mais implacáveis do chefe de Estado e Comandante em Chefe das FAPLA no combate contra um inimigo que ameaçava a segurança nacional e, por conseguinte, o seu poder.

As confrontações foram anteriores a tentativas das tropas governamentais e dos seus aliados soviéticos e cubanos. Em Agosto de 1987, a designada “Operação Saludando Octubre” tentou invadir as zonas da Jamba e Mavinga, entretanto sem grande sucesso.

Cinco meses de conflito bastaram para que a coligação governamental levasse de vencida as tropas rebeldes e o exército invasor do apartheid. Foi precisamente num quadro de vantagem militar no terreno que abriu caminho a que, em Dezembro de 1988, fossem assinados os Acordos de Nova Iorque entre Angola, Cuba e a África do Sul.

Também conhecidos como Acordo Tripartido, a iniciativa viabilizou o fim da presença das tropas estrangeiras (cubanas e sul-africanas) em território angolano, e abriu caminho à independência da Namíbia, em 1991.

Aliás, é na independência da Namíbia, a que se seguiu o fim do apartheid, na África do Sul, que residirá o aspecto mais notório do legado de JES na África austral.

O duplo acontecimento reforçou a liderança do estadista angolano e projectou a imagem além-fronteiras de um líder de aparência tímida e reservada, mas de um carácter calculista e determinado. Era ele o rosto de uma vitória expressiva, a qual abriu caminho para eventos não menos marcantes que também acentuavam as ambições de Angola no ‘concerto das nações’.

UNITA & SAVIMBI

Mas tratou-se de uma vitória parcial para o propósito maior, que era a pacificação de Angola. Retiradas as tropas estrangeiras dos dois lados, restava resolver o conflito a nível doméstico.

A UNITA perdeu o apoio militar sul-africano e político-diplomático norte-americano, mas viria a empreender a guerra por mais 14 anos. Pelo meio, uma sucessão de eventos. Vários acordos de paz, encontros bilaterais, trilaterais, com ou sem mediação interna e externa, mas tudo com denominador comum que era a continuação de um conflito que matava gente, destruía e levava a que Angola adiasse os desafios da reconstrução e do desenvolvimento.

Merecem destaque os Acordos de Paz de Bissesse, iniciativa do antigo país colonizador que colocou, pela primeira vez, José Eduardo dos Santos e Jonas Malheiro Savimbi frente à frente. Até começou bem. Em Maio de 1991, o clima ainda era de muita tensão, mas a transferência do líder guerrilheiro das matas para Luanda incutiu entre a opinião pública a noção de que a paz era permanente.

Foi à luz dos acordos assinados na cidade portuguesa que se realizaram as primeiras eleições gerais multipartidárias na história do país. A mesma história que irá, para sempre, registar como negativas a sucessão de eventos que se seguiram à ida nas urnas.

A Lei Constitucional (e não Constituição) de então impunha uma maioria simples necessária para se vencer a corrida presidencial, sendo que José Eduardo dos Santos, o presidente cessante que se candidatava à própria sucessão, foi incapaz de alcançar essa fasquia na primeira volta. Com 35% dos sufrágios, Jonas Savimbi recusou a segunda volta e proclamou as eleições como injustas e fraudulentas.

O que se seguiu já todos sabemos. A nova ´temporada´ do conflito civil angolano eclodiu com maior intensidade. Conheceu altos e baixos, interregnos e recomeços, temperada com acusações de parte a parte que vincavam a falta de entendimento entre ambas.

Em Luanda, o líder José Eduardo tinha de fazer face à esta nova realidade e, ao mesmo tempo, ocupar-se de outras questões de Estado. Pelo meio, houve negociações e o que pareciam ser acordos de paz, seguidas de perto por missões de observação das Nações Unidas e uma denominada Troika de Observadores (EUA, Rússia e Portugal).

O Protocolo de Lusaka, assinado a 20 de Novembro de 1994, merece destaque, pois não se tem conhecimento de negociações de paz que tivessem levado tanto tempo. Por outro lado, viabilizou uma importante decisão política que teria impacto durante anos na vida política nacional: a formação do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN).

A plataforma política teria sido uma saída que José Eduardo dos Santos encontrou para acomodar entidades da UNITA no Governo e esvaziar, assim, os seus argumentos de guerra. Atribuiu, também, lugares às demais forças políticas que tinham conseguido entrar na Assembleia Nacional nas eleições de 29 e 30 de Setembro.

Projectou-se o GURN como mais uma prova do carácter conciliador do chefe de Estado, uma decisão que respondia aos “superiores interesses dos angolanos”.

Três anos depois, fruto de uma notória diplomacia do Governo de José Eduardo, a UNITA aceita enviar os seus deputados a Luanda para tomarem posse no parlamento.

Entretanto, nas matas, a guerra prosseguia. Os rebeldes haviam abandonado a sua matriz essencialmente guerrilheira e passado para a guerra convencional. Era algo inédito. O uso de material pesado e confronto directo com as Forças Armadas Angolanas (FAA) conferiram ao ‘galo negro’ um carácter mais letal e destrutivo desde que decidira que o MPLA era um poder ilegítimo do pós-independência.

ASTÚCIA DE LÍDER

Foi por esta altura que José Eduardo dos Santos fez o pronunciamento mais mediático e de maior impacto dos últimos anos. Talvez mesmo da sua presidência. Em Agosto de 2001, numa reunião do comité central do MPLA, JES anuncia que não se recandidataria às próximas eleições presidenciais (que não tinham data). “O próximo candidato do MPLA não se chamará José Eduardo dos Santos”, referiu.

Pela primeira vez, começou-se, então, a falar do legado de JES, mas foi notória, sobretudo, a preocupação em saber-se quem estaria à altura de o substituir.

Os anos de liderança, de que resultara uma robusta experiência política e gestão de conflitos, aliado a um ambiente em que se começava a despontar vozes discordantes no seio do partido no poder, foram aspectos relevantes na análise sobre o que o teria levado a dizer o que disse quando não tinha intenções de fazer o que disse que faria… Ou seja, analistas viram no discurso uma inteligente fuga para a frente, com o propósito de afastar eventuais pretendentes ao cargo e reforçar o seu poder a nível do partido e do país.

Outros observadores foram mais longe e viram no pronunciamento o corolário de acontecimentos em série que incluíam, inclusive, a situação militar. Por essa altura, Jonas Savimbi começava a ter sérias dificuldades em manobrar. As sanções económicas impostas pelas Nações Unidas e a campanha diplomática internacional empreendida por Luanda resultaram num isolamento sem precedentes para o líder maoista.

A UNITA perdera os seus principais bastiões (Bailundo e Andulo) e já não dispunha de capacidade para alimentar a sua aventura de guerra de maior risco nos últimos anos, que era a opção pela guerra convencional. Sem apoio político-diplomático e com a logística limitada, retornou para a guerrilha.

Foi mais ou menos nessa altura que Dos Santos traçou os famosos ´três cenários´ possíveis para Jonas Savimbi e sua cruzada: rendição, captura ou morte em combate. Falando no final de um encontro com os embaixadores dos países representados na Tróika de Observadores, o chefe de Estado advertiu que não haveria outra saída para Savimbi.

E assim foi. Na noite de 22 de Fevereiro, as autoridades anunciaram a morte em combate de Jonas Malheiro Savimbi. Era o fim definitivo da guerra em Angola. Vinte e sete anos de conflito civil, 23 dos quais com JES na chefia do Estado e das Forças Armadas.

Com o término da guerra, o país voltou as atenções para as tarefas de reconstrução e desenvolvimento. José Eduardo dos Santos emergiu como o principal artífice, aquele cujo legado sobreviveria por várias gerações e inspiraria futuros líderes.

Um legado que estará patente, em particular, na forma como se conduziu o processo de reconciliação nacional, traduzida na harmonização de sentimentos e tolerância entre apoiantes de um e de outro lado.