Que legado?
LEGADO. No próximo dia 26 de Setembro, João Manuel Gonçalves Lourenço estará no centro das atenções quando o presidente do Tribunal Constitucional, Rui Ferreira, lhe atribuir os adornos dourados que simbolizam o poder do Estado angolano. Mas os olhares estarão também em José Eduardo dos Santos, a figura que marcou Angola nos últimos 38 anos. Na hora da retirada, a pergunta que se impõe: o que deixa ele para Angola?
Certamente quando José Eduardo dos Santos, na altura ministro das Relações Exteriores, tomou posse como o segundo chefe de Estado da jovem República Popular de Angola, poucos, ou mesmo ninguém, imaginaria que o jovem político começaria um reinado de quase quatro décadas, prenhe em eventos políticos e militares de toda a sorte.
Lúcio Lara, então presidente da Assembleia do Povo, acabara de empossar um líder que moldaria um novo regime angolano à sua imagem e semelhança, e marcaria a vida de toda a nação.
Nesse dia, a 21 de Setembro de 1979, o país revolucionário ainda chorava a perda de Agostinho Neto, que ,semanas antes, partira para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em tratamento médico. A indefinição, por Neto, de alguém que o sucedesse em caso de alguma adversidade, apresentou às estruturas do MPLA um dilema de proporções nada fáceis de gerir.
Vários relatos apontam o nacionalista Agostinho Mendes de Carvalho, próximo de Neto, como tendo sido uma voz preponderante entre os seus correligionários do Bureau Político do partido para a indicação de José Eduardo.
De qualquer forma, o jovem de 37 anos estava investido das mais altas funções de Estado e pronto para fazer história, num contexto de instabilidade militar.
UM LÍDER EM GUERRA
Angola emergira como um país independente em condições, de certo modo, diferentes das demais ex-colónias portuguesas em África. A realidade imposta por um processo mal gerido levou a que o país entrasse em guerra logo a seguir a 11 de Novembro de 1975. O conflito armado foi, precisamente, o maior desafio com que o novo estadista se deparou nos seus primeiros anos de governação.
Tratava-se de uma guerra de baixas proporções, sendo que a UNITA, a organização guerrilheira que se recusava a reconhecer a legitimidade do MPLA, já dispunha da Jamba como seu quartel-general, mas sem capacidade militar e bélica que pudesse, realmente, incomodar as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA). Mas a situação exigia grande habilidade e discernimento políticos de José Eduardo dos Santos.
Com o apoio político dos Estados Unidos e militar e logístico da África do Sul e do Zaire, sobretudo, a UNITA fez o conflito subir de intensidade, alastrando-se por todo o território. Apenas a capital Luanda permanecia praticamente impenetrável pelas tropas daquele que se notabilizara como um bravo nacionalista na luta contra os portugueses. Era grande o aperto militar, político e diplomático com que o novo estadista tinha de lidar.
A INDEPENDÊNCIA DA NAMÍBIA
O conflito agudiza-se em meados da década de 1980. A liderança de JES é fundamental na condução das tropas a partir de Luanda e nos preparativos ultra-secretos do que viria a tornar-se no acontecimento militar mais épico a nível de África.
A Batalha do Cuito-Cuanavale, como ficou conhecida, testou ao limite as capacidades das tropas governamentais e dos seus aliados cubanos no confronto directo com a UNITA, estas apoiadas pelo exército sul-africano do então regime do apartheid.
Entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março do ano seguinte, esta região da província angolana do Kuando-Kubango evidenciou uma das facetas mais implacáveis do chefe de Estado e Comandante em Chefe das FAPLA no combate contra um inimigo que ameaçava a segurança nacional e, por conseguinte, o seu poder.
As confrontações foram anteriores a tentativas das tropas governamentais e dos seus aliados soviéticos e cubanos. Em Agosto de 1987, a designada “Operação Saludando Octubre” tentou invadir as zonas da Jamba e Mavinga, entretanto sem grande sucesso.
Cinco meses de conflito bastaram para que a coligação governamental levasse de vencida as tropas rebeldes e o exército invasor do apartheid. Foi precisamente num quadro de vantagem militar no terreno que abriu caminho a que, em Dezembro de 1988, fossem assinados os Acordos de Nova Iorque entre Angola, Cuba e a África do Sul.
Também conhecidos como Acordo Tripartido, a iniciativa viabilizou o fim da presença das tropas estrangeiras (cubanas e sul-africanas) em território angolano, e abriu caminho à independência da Namíbia, em 1991.
Aliás, é na independência da Namíbia, a que se seguiu o fim do apartheid, na África do Sul, que residirá o aspecto mais notório do legado de JES na África austral.
O duplo acontecimento reforçou a liderança do estadista angolano e projectou a imagem além-fronteiras de um líder de aparência tímida e reservada, mas de um carácter calculista e determinado. Era ele o rosto de uma vitória expressiva, a qual abriu caminho para eventos não menos marcantes que também acentuavam as ambições de Angola no ‘concerto das nações’.
UNITA & SAVIMBI
Mas tratou-se de uma vitória parcial para o propósito maior, que era a pacificação de Angola. Retiradas as tropas estrangeiras dos dois lados, restava resolver o conflito a nível doméstico.
A UNITA perdeu o apoio militar sul-africano e político-diplomático norte-americano, mas viria a empreender a guerra por mais 14 anos. Pelo meio, uma sucessão de eventos. Vários acordos de paz, encontros bilaterais, trilaterais, com ou sem mediação interna e externa, mas tudo com denominador comum que era a continuação de um conflito que matava gente, destruía e levava a que Angola adiasse os desafios da reconstrução e do desenvolvimento.
Merecem destaque os Acordos de Paz de Bissesse, iniciativa do antigo país colonizador que colocou, pela primeira vez, José Eduardo dos Santos e Jonas Malheiro Savimbi frente à frente. Até começou bem. Em Maio de 1991, o clima ainda era de muita tensão, mas a transferência do líder guerrilheiro das matas para Luanda incutiu entre a opinião pública a noção de que a paz era permanente.
Foi à luz dos acordos assinados na cidade portuguesa que se realizaram as primeiras eleições gerais multipartidárias na história do país. A mesma história que irá, para sempre, registar como negativas a sucessão de eventos que se seguiram à ida nas urnas.
A Lei Constitucional (e não Constituição) de então impunha uma maioria simples necessária para se vencer a corrida presidencial, sendo que José Eduardo dos Santos, o presidente cessante que se candidatava à própria sucessão, foi incapaz de alcançar essa fasquia na primeira volta. Com 35% dos sufrágios, Jonas Savimbi recusou a segunda volta e proclamou as eleições como injustas e fraudulentas.
O que se seguiu já todos sabemos. A nova ´temporada´ do conflito civil angolano eclodiu com maior intensidade. Conheceu altos e baixos, interregnos e recomeços, temperada com acusações de parte a parte que vincavam a falta de entendimento entre ambas.
Em Luanda, o líder José Eduardo tinha de fazer face à esta nova realidade e, ao mesmo tempo, ocupar-se de outras questões de Estado. Pelo meio, houve negociações e o que pareciam ser acordos de paz, seguidas de perto por missões de observação das Nações Unidas e uma denominada Troika de Observadores (EUA, Rússia e Portugal).
O Protocolo de Lusaka, assinado a 20 de Novembro de 1994, merece destaque, pois não se tem conhecimento de negociações de paz que tivessem levado tanto tempo. Por outro lado, viabilizou uma importante decisão política que teria impacto durante anos na vida política nacional: a formação do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN).
A plataforma política teria sido uma saída que José Eduardo dos Santos encontrou para acomodar entidades da UNITA no Governo e esvaziar, assim, os seus argumentos de guerra. Atribuiu, também, lugares às demais forças políticas que tinham conseguido entrar na Assembleia Nacional nas eleições de 29 e 30 de Setembro.
Projectou-se o GURN como mais uma prova do carácter conciliador do chefe de Estado, uma decisão que respondia aos “superiores interesses dos angolanos”.
Três anos depois, fruto de uma notória diplomacia do Governo de José Eduardo, a UNITA aceita enviar os seus deputados a Luanda para tomarem posse no parlamento.
Entretanto, nas matas, a guerra prosseguia. Os rebeldes haviam abandonado a sua matriz essencialmente guerrilheira e passado para a guerra convencional. Era algo inédito. O uso de material pesado e confronto directo com as Forças Armadas Angolanas (FAA) conferiram ao ‘galo negro’ um carácter mais letal e destrutivo desde que decidira que o MPLA era um poder ilegítimo do pós-independência.
ASTÚCIA DE LÍDER
Foi por esta altura que José Eduardo dos Santos fez o pronunciamento mais mediático e de maior impacto dos últimos anos. Talvez mesmo da sua presidência. Em Agosto de 2001, numa reunião do comité central do MPLA, JES anuncia que não se recandidataria às próximas eleições presidenciais (que não tinham data). “O próximo candidato do MPLA não se chamará José Eduardo dos Santos”, referiu.
Pela primeira vez, começou-se, então, a falar do legado de JES, mas foi notória, sobretudo, a preocupação em saber-se quem estaria à altura de o substituir.
Os anos de liderança, de que resultara uma robusta experiência política e gestão de conflitos, aliado a um ambiente em que se começava a despontar vozes discordantes no seio do partido no poder, foram aspectos relevantes na análise sobre o que o teria levado a dizer o que disse quando não tinha intenções de fazer o que disse que faria… Ou seja, analistas viram no discurso uma inteligente fuga para a frente, com o propósito de afastar eventuais pretendentes ao cargo e reforçar o seu poder a nível do partido e do país.
Outros observadores foram mais longe e viram no pronunciamento o corolário de acontecimentos em série que incluíam, inclusive, a situação militar. Por essa altura, Jonas Savimbi começava a ter sérias dificuldades em manobrar. As sanções económicas impostas pelas Nações Unidas e a campanha diplomática internacional empreendida por Luanda resultaram num isolamento sem precedentes para o líder maoista.
A UNITA perdera os seus principais bastiões (Bailundo e Andulo) e já não dispunha de capacidade para alimentar a sua aventura de guerra de maior risco nos últimos anos, que era a opção pela guerra convencional. Sem apoio político-diplomático e com a logística limitada, retornou para a guerrilha.
Foi mais ou menos nessa altura que Dos Santos traçou os famosos ´três cenários´ possíveis para Jonas Savimbi e sua cruzada: rendição, captura ou morte em combate. Falando no final de um encontro com os embaixadores dos países representados na Tróika de Observadores, o chefe de Estado advertiu que não haveria outra saída para Savimbi.
E assim foi. Na noite de 22 de Fevereiro, as autoridades anunciaram a morte em combate de Jonas Malheiro Savimbi. Era o fim definitivo da guerra em Angola. Vinte e sete anos de conflito civil, 23 dos quais com JES na chefia do Estado e das Forças Armadas.
Com o término da guerra, o país voltou as atenções para as tarefas de reconstrução e desenvolvimento. José Eduardo dos Santos emergiu como o principal artífice, aquele cujo legado sobreviveria por várias gerações e inspiraria futuros líderes.
Um legado que estará patente, em particular, na forma como se conduziu o processo de reconciliação nacional, traduzida na harmonização de sentimentos e tolerância entre apoiantes de um e de outro lado.
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