ANGOLA GROWING
FRANCISCO QUEIROZ

“Quanto ao informal, adoptam-se medidas de polícia, em vez de medidas de política”

ENTREVISTA: Autor da obra recentemente lançada ‘Economia Informal’, Mestre em Ciência Jurídica e Económica, e actual Ministro da Geologia e Minas, Francisco Queiroz ilustra o contexto histórico-social na base do fenómeno da economia informal, sugere soluções e lembra que o sector é olhado com uma perspectiva microeconómica em vez macroeconómica, e como um todo.

O que o motivou a escrever um livro sobre a economia informal?

A motivação inicial foi a continuação dos meus estudos. Eu era licenciado e com este trabalho tornei-me mestre em ciência jurídica e económica, em 1996, quando defendi a dissertação, na faculdade de direito da Universidade Clássica de Lisboa. Portanto, foi um trabalho motivado pela necessidade de apresentar uma dissertação. Mas, a escolha do tema resulta da minha vivência na sociedade angolana, sobretudo, dos estudos que ia fazendo a nível do direito económico em que fui percebendo que a nossa economia tem duas partes bem evidenciadas. Uma parte oficial e uma parte não-oficial ou informal. Senti que faltava de critério específico para abordar essa matéria, então propus-me fazer um trabalho técnico e científico sobre isso.

Aborda na obra diferentes conceitos de economia informal. Como a resume?

Foi necessário fazer um trabalho de limpeza do conceito, de rastreamento de tudo o que se diz sobre esse conceito e procurar extrair um que fosse a síntese de economia informal. Antes de economia informal, no livro, falei da economia do mercado paralelo. O mercado paralelo tem características muito específicas, porque ocorreu num contexto de economia centrada, no período socialista, de 1975 a 1991. Digamos que 1991 foi o corte constitucional com o regime socialista e com o regime político mono-partidário. 2002 foi, de facto, o virar da página do ponto de vista concreto. Mas até a essa altura, havia o mercado paralelo. O mercado paralelo é um mercado totalmente ilegal face à legislação socialista. Porque a legislação socialista não permitia um outro mercado que não fosse o mercado público, o mercado do Estado. As lojas eram do Estado, as fábricas eram do Estado, agricultura era do Estado, nós próprios advogados éramos do Estado, tudo era do Estado, dentro de um mercado inexistente, porque o mercado não pode funcionar com um único ‘player’, que é o Estado. Então, porque a economia não se compadece com este tipo de regras muito redutoras e muitos exclusivistas, a economia passou a desenvolver-se ao lado desse mercado. Por isso é que se diz ‘mercado paralelo’. As actividades que hoje são normais desenvolver, naquele tempo eram proibidas, mas eram desenvolvidas nesse tal mercado paralelo, um mercado ilegal.

A concepção do conceito centra-se então em características jurídico-legais?

Este é um critério - o jurídico-legal. Há o critério político também, que tem que ver com os programas. Por exemplo, há uma corrente que defende que uma actividade que não esteja inserida nos programas de desenvolvimento económico do país, nas políticas de médio e longo prazos do Estado, é informal, é um critério político. Há ainda um outro critério que é o tributário, que dita que a economia que não paga imposto é informal. Esse é o critério que prevalece na Europa e em países organizados, que têm mais meios de controlo da fiscalidade. Este é, para eles, o meio mais forte do controlo da economia oficial, aquilo que escapa do controlo, é enquadrado no informal. É o critério tributário. E, há ainda outro critério, que é decisivo para compreender a informalidade em África, que é o critério sociológico. O critério sociológico faz uma explicação das manifestações informais e da motivação informal com base em motivações culturais. Este critério busca a História económica dos países africanos e vê o que está por trás, o que leva um tipo de manifestação ou comportamento informal que não está a enquadrar-se na economia de mercado, a economia padrão que veio com a colonização. A Organização Internacional do Trabalho que apresentou o relatório do Quénia, de 1972, onde, pela primeira vez, se apresentou essa corrente chamada ‘estruturalista’ da concepção de economia informal. Estruturalista porque não é uma manifestação meramente episódica de a quitandeira aqui, mercado ali. Não tem essa visão microeconómica. Tem uma visão macroeconómica. Concebe a economia informal num formato macroeconómico, porque está enraizada em motivações culturais.

Essa contextualização histórica é determinante então...

Quando os países europeus chegaram aos países africanos para colonizar, nos séculos XIII e XIV, encontram uma realidade. Esta realidade é política. Encontram sistemas político-monárquicos de governação e tradicional. Encontram um sistema económico baseado numa ideologia chamada comunitarismo, (que não se confunde com comunismo), que é baseada na propriedade dominial dos bens. Os recursos naturais, como os rios, terras, lagos e faunas pertencem a famílias agrupadas em comunidades. Estas comunidades são encabeçadas por um ancião ou pelo rei. Aqui, o objectivo da actividade económica é mais de solidariedade familiar. Ao contrário da economia de mercado que tem um indivíduo centro, uma economia privada, na sociedade tradicional, a economia é comunitária. Daí a solidariedade que, muitas vezes, a Europa tem dificuldades de perceber em África, essa solidariedade familiar. Vem daí, da tradição que muitas vezes até recebe o rótulo de nepotismo. Tudo tem um histórico, as coisas não acontecem por mero pecado. Os países africanos são muitas vezes vistos como se fossem todos pecadores. O positivo do colonialismo é que trouxe métodos mais avançados que permitem levar ao desenvolvimento - a economia tradicional não leva ao desenvolvimento, está em decadência. Mas, apesar de estar em decadência, há muita remanescência nos agentes da economia que os levam a ter um comportamento tradicionalista. Os agentes da economia tradicional têm dificuldades em aderir à economia moderna e têm um espaço de conflitualidade, onde prosperam questões de natureza informal. Por exemplo, em Angola, a economia tradicional é basicamente aquela que se realiza no campo, porque, no interior de Angola, é onde a colonização levou mais tempo para chegar. Luanda, Benguela, no litoral de um modo geral, a economia oficial está mais enraizada, aqui onde está o desenvolvimento. Mas, no interior, a população ainda se rege muito por este tipo de economia informal, ainda vê as coisas nessa perspectiva comunitária. As próprias leis, às vezes, reflectem isso. A lei constitucional, antes desta de 2010, tinha uma figura de propriedade que se chamava ‘propriedade familiar’ e que desapareceu, na minha opinião precipitadamente, porque hoje serviria para enquadrar a economia tradicional. E há outras manifestações que se vão assumindo. A própria lei de terra comunitária é exemplo.

Mas a economia informal não se circunscreve aos meios rurais...

Os agentes da economia tradicional deslocaram-se para as cidades em busca de melhores condições de vida, segurança por causa da guerra, e estão aqui, em Luanda, em Benguela, nos grandes centros populacionais urbanos. Trouxeram os seus hábitos e trouxeram também a sua dificuldades de se enquadrar na economia oficial. Realizar a economia de uma forma informal é mais fácil, inclusive por causa das regras que o formal obriga a cumprir. Estes agentes que pertencem a uma economia tradicional ainda têm dificuldades. Então, nas nossas economias africanas, não vale apenas usar o critério tributário para rotular tudo o que está fora do informal. São pessoas que não fazem de propósito, não têm uma motivação para contrariar a lei, a cobrança de impostos, ou desafiar o sistema. São simplesmente pessoas que vêm de uma realidade em que a economia é diferente tem outros pressupostos. Quando se perceber bem isto, vai conseguir-se encontrar soluções de acordo com essa realidade. É ai que está a grande insuficiência dos estudiosos até agora, em compreenderem de facto este lado, e com base nessa compreensão desenhar programas bem sucedidos. Neste momento, quer os agentes informais, quer os tradicionais são párias económicos. Mas a acção deles tem efeitos diários.

E esse efeito é bom ou mau para a economia?

Do ponto de vista daquilo que são as necessidades das pessoas é bom. Então, se há desemprego, a parte oficial, formal, não consegue criar empregos suficientes, o agente vai ao mercado informal e encontra emprego. Segundo, o estudo do Instituto Nacional de Estatística, pelo menos 69% dos novos empregos que são criados vêm da economia informal. A economia informal cumpre uma função social. Se em Luanda, que foi construída para 600 mil pessoas e hoje alberga seis milhões, o Estado não consegue construir casas para todas as famílias, o sector informal fá-lo, mal ou bem mas faz...

Como é que o Estado deve lidar com isso?

Se quer mudar uma realidade, primeiro tem de se conhecê-la, se não vão criar-se soluções que não são capazes de resolver o problema. E uma das formas de compreender a realidade é exactamente ter um entendimento técnico do sector não estruturado da economia, uma visão de conjunto. Kinguilas, mercado do Roque Santeiro, isto são apenas manifestações de economia informal. Temos de compreender a economia informal, como fazendo parte de um todo. E temos de atrair este todo para integrar o sector formal, para integrar a economia do desenvolvimento. A sugestão que eu faço é no sentido de a economia informal passar a ser vista como um ‘sector não estruturado da economia’, englobando também a economia tradicional (que é outra economia com as sua ideologia e as suas regras, diferentes da economia de mercado), que haja soluções direccionadas para este sector.

Como funcionaria na prática este ‘sector não estruturado da economia’?

Embora sejam diferentes, os agentes da economia tradicional e informal podem ser tratados como um único sector, porque os dois não são estruturados. A única estruturada é oficial ou de mercado. O que proponho é a criação de uma instituição que se ocupe especificamente desse sector não estruturado. Pode não ser uma instituição nova, acho que não estamos em tempos de criar instituições novas, porque isso tem custos. Mas instituições que existem podem fazer isto, eu tenho falado do INAPEM, que pode criar um departamento para cuidar das políticas e dos programas voltados para um ‘sector não estruturado da economia’. Estudar os fenómenos, fomentar pesquisas, ao mesmo tempo que faria um trabalho de educação, formação e capacitação dos agentes da economia informal. Portanto, uma instituição pública que esteja voltada para este sector não estruturado. Outras medidas são de natureza legal, que a maior parte está feita, porque a Constituição tem o princípio da actividade privada, da liberdade económica e propriedade privada, é inclusiva. Compete ao Estado fazer tudo para que os agentes não estejam de fora e esta medida, do ‘sector não estruturado’, reconhecida legalmente, seria uma forma de inclusão. A lei das pequenas e micros-empresas também tem muitas soluções para esse sector não estruturado. Há apenas que passar aplicá-las com essa perspectiva. O Programa de Reconversão da Economia Informal, que previu naquela altura quatro biliões e cem milhões de kwanzas, isto em 2014, pode funcionar perfeitamente. Só é necessário mudar a perspectiva e passar a olhar para o sector informal, o ‘não estruturado’, numa perspectiva macroeconómica em vez de como se tem feito.

Essa perspectiva errónea é resultado de falta de reconhecimento do peso do sector informal?

Na minha opinião é falta de perspectiva, porque se concebe a economia informal numa perspectiva microeconómica quando a economia informal se trata de uma questão macroeconómica. Só se consegue esta alteração estudando e investigando muito, não é fácil mas é necessário e procedendo aos ajustes necessários. No nosso contexto, quais as principais causas da economia informal angolana? No nosso caso, as causas são mais culturais. Porque são os agentes tradicionais que fazem a economia informal. Temos mais de 80% da população nacional a reger-se pelas regras tradicionais, quer na economia, quer na forma de constituir família. As outras causas são de natureza política, por causa dessa visão microeconómica da economia informal.

E quanto à conotação mais negativa da economia informal, a que não tem matriz cultural, e que toca a corrupção?

Aí estamos a falar de economia ilegal, que não se confunde com economia legal. Todos os tráficos são ilegais, tráficos de armas, de drogas, de seres humanos, de influências, de ouro ou diamante. Esse tipo de manifestação económica é ilegal, isto não se confunde com economia informal. Economia ilegal é um caso de polícia, já a economia informal não é ilegal. Problema é que as vezes, para se resolver problemas de economia informal, adoptam-se medidas de polícia ao invés de se adoptar medidas políticas. Para a economia informal e tradicional as medidas devem ser de política e não de polícia. Vender uma camisa não é ilegal, é informal porque o vendedor não tem licença. Tinha de ter uma licença, tinha de estar inscrito e pagar a sua taxa. Não cumpre os requisitos formais, é informal. Mas não se trata de crime. O que se exige do Estado é a facilitação do acesso à actividade económica. Permitir de modo simples e célere que os agentes operem. Com o mínimo possível de burocracia. Com uma folha A4 escrevia-se o nome, tratava-se o número de contribuinte gratuito, com registo em base de dados da actividade que quer desenvolver, local, onde mora. Dava-se-lhe um cartão e, com base nessa informação, a pessoa já estaria integrada no sector não estruturado da economia. Depois seria acompanhá-lo, do ponto de vista financeiro também. Pagaria uma taxa anual pequena, não pode ser imposto porque ele não está capacitado para pagar imposto, o agente habitua-se e até se sente honrado. E depois, calmamente, fazem-se outras acções de formação e capacitação que o incluem cada vez mais no sector formal e o ajudam a crescer. Tem de haver uma estrutura para acompanhar isso. É um processo longo é verdade, mas tem que se dar este primeiro passo.