“O Estado não pode exigir impostos para depois não cumprir com as obrigações”
Sócio da PWC em Angola traça o ano económico e fiscal de 2018 e chama a atenção para os atrasados do Estado junto dos privados que, no seu entender, integra o cabaz de constrangimentos à captação do investimento. E adverte que o processo de repatriamento de capitais “não será fácil”.
Que balanço faz de 2018, depois de quatro anos de crise?
Angola é uma economia fortemente dependente do petróleo e a queda do preço em 2014 teve um impacto muito significativo. A crise provocou graves desequilíbrios macroeconómicos que se vêm arrastando ao longo destes anos, como as taxas de inflação muito significativas. Em 2016, foram mais de 40% e, em 2017, na ordem dos 26%. E uma pressão muito grande também em termos cambiais, de redução das reservas internacionais líquidas, um cenário muito difícil para Angola. O petróleo representa uma fatia muito grande das exportações, mais de 90%, e tem um peso muito grande nas receitas do Estado, mais de 60%.
E este ano?
O que vimos em 2018, que também fica marcado por um novo ciclo político, é uma tentativa de dar resposta a esses desequilíbrios macroeconómicos. O Executivo tem vindo a implementar o programa de estabilização macroeconómica, que visa reduzir essa vulnerabilidade fiscal, procurar aumentar as receitas de outros sectores que não seja o petrolífero, fortalecer a sustentabilidade da dívida pública, que é também um dos impactos negativos desta crise. No fundo, é o aumento do endividamento do Estado ao longo destes anos. A dívida pública duplicou, de 2013 a 2018. Este programa tinha também como objectivo fortalecer a sustentabilidade da dívida e implementar um regime cambial mais flexível. Até ao ano passado, tínhamos um regime cambial bastante controlado, com taxas fixadas. Também neste programa havia intenção ou um programa de estabelecer o combate ao branqueamento de capitais, que era um dos factores críticos no acesso às divisas, nos mercados internacionais.
Em matéria fiscal, que alterações se observaram?
2018 foi um ano bastante positivo, face àquilo que tem vindo a ser o histórico nos últimos 3/4 anos. É preciso recuar até 2013 para encontrar um ano em que a execução orçamental não apresentasse um défice. Todos os anos, de 2014 a 2017, apresentaram défices orçamentais. Nalguns casos, bastantes significativos. 2018, apesar desta conjuntura, é um ano que se vai saudar em termos de execução orçamental. Segundo estimativas do Governo, até pelo ‘superavit’, um valor pequeno 0.6%, mas acima de zero.
A meta do Governo é realizável?
Na execução orçamental, temos vários elementos. O orçamento para 2018 tinha um preço do petróleo bastante conservador, na ordem dos 50 dólares o barril, que acabou por ser superior. Houve aqui uma folga em termos orçamentais, mas que foi compensada pela queda da produção. No sector petrolífero, houve até um desempenho menos positivo, mas que acabou por ser compensado pelo não-petrolífero.
Que factores concorreram para a melhoria da execução orçamental?
O aumento da eficiência e da eficácia na cobrança fiscal, provavelmente, fruto dos esforços de modernização da própria Administração Geral Tributária (AGT), que conseguiu cobrar impostos de forma mais eficaz. Por outro lado, há um controlo mais apertado da despesa. O que se verificou é que as despesas reais ficaram abaixo daquilo que tinha sido planeado. Estes factores contribuíram para o equilíbrio orçamental.
A AGT está a considerar os atrasados do Estado aos privados como meio de liquidação do imposto. É um mecanismo recomendável?
Será uma forma de ultrapassar o problema, porque, os pagamentos atrasados do Estado, as dívidas do sector público, são um dos constrangimentos, um dos desafios ao crescimento económico e à atracção de investimento. Também é indicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Eventualmente, esta forma de compensação será uma forma expedita, talvez, de resolver dois problemas: o das empresas, mas sem pesar na tesouraria do Estado.
O que aconselha como regras fiscais?
Quando uma empresa deve, tem de pagar imediatamente sob pena de ter multas e penalidades muito significativas. Mas, por outro lado, o Estado, a entidade que impõe as regras, quando é o devedor não tem a mesma posição. No fundo, era esse tipo de diálogo que existia entre o contribuinte e o Estado.
O que é o mais correcto?
Idealmente, se o Estado pagasse com a mesma velocidade com que os contribuintes pagam, este tema não existiria. O Estado não pode exigir que lhe sejam pagos os impostos sem atrasos para depois não cumprir com aquilo que são as obrigações que assumiu.
Mantendo essa postura do Estado, que riscos corre a economia?
Ao longo de 2018, vimos um esforço para regularizar algumas destas situações dos atrasados e continuaremos a assistir, em 2019, a um esforço nesse sentido, porque, de facto, é um dos aspectos que estrangula a economia. Principalmente numa economia com o peso do Estado tão grande. Mesmo o privado, que existe de uma forma ou de outra, está ainda muito dependente do sector estatal.
“Risco do perdão de dívidas”
O Estado perdoou dívidas fiscais em 2014. Um novo perdão fiscal resolveria o problema?
Esta medida não é inédita. Já vimos ser aplicada noutros contextos e países. Tem algumas vantagens. A mais óbvia é o encaixe de receitas para o Estado. Tem outras menos positivas, talvez na mensagem que passa, pelo menos naquele momento de que, se calhar, que quem cumpre pode não ser beneficiado. De qualquer forma, acaba por ser uma decisão política e naturalmente o Executivo terá tido as suas razões. Ponderados os prós e contras, entendeu ser o mais adequado.
O actual contexto permitiria um novo perdão fiscal?
A realidade também está a mudar. A execução orçamental e aquilo que aconteceu em 2018 é um reflexo. A modernização do sistema fiscal está a ocorrer com novas leis, com regulamentação, inclusivamente a introdução de novos impostos. Antecipa-se que seja uma AGT mais eficiente e mais eficaz. Eventualmente, isso poderá reduzir a carga fiscal nalguns dos actuais contribuintes, nalguns dos actuais impostos, nomeadamente no imposto industrial.
Existiria outra medida que não fosse o perdão fiscal?
Não conheço os detalhes que levarão à tomada de decisão, mas, normalmente, esta medida tem como principal objectivo a arrecadação de receitas. E assegurar que alguns contribuintes que estavam fora do sistema pudessem começar a pagar os impostos e eventualmente viabilizar alguns dos negócios que, pelo peso da carga fiscal, já não estariam em condições de continuar.
Houve quem visse o mecanismo como forma de facilitar o branqueamento de capitais…
Existe esse risco de se criar ou de se passar essa mensagem ou percepção, principalmente se, de futuro, se quiser impor uma cultura de rigor e cumprimento. Ficará sempre na cabeça das pessoas que, a certa altura, houve um perdão de dívida e eventualmente poderá haver outros no futuro.
Que nota se pode dar ao sistema tributário nacional?
Temos estado a assistir a um esforço muito grande e um investimento muito grande da AGT, na infra-estrutura, meios e sistemas informáticos e na capacitação dos seus técnicos, com recrutamento de quadros e muito investimento na formação. Hoje temos uma AGT mais capaz. Obviamente, também o mercado está a evoluir e temos novas leis, novos regulamentos. Ainda há espaço para tornar a máquina fiscal mais eficiente.
Os mecanismos de actuação já são comparáveis aos das economias de referência?
De uma forma geral, as leis, o enquadramento legal e os mecanismos de cobrança e fiscalização seguem as práticas normais. Há sempre espaço para melhorias e é também uma das observações do FMI, tentar tornar o processo de pagamento de impostos menos oneroso. Ou seja, historicamente, havia uma carga muito pesada em termos administrativos. Para se pagar impostos, havia muitos impressos, muito papel. A tendência, hoje em dia, é a digitalização e tornar mais fácil o processo declarativo dos contribuintes e do próprio pagamento. No último ano, assistimos a evoluções muito significativas como o pagamento electrónico e as declarações electrónicas.
Angola prevê introduzir o IVA já em 2019. A máquina fiscal está preparada para esse novo imposto?
O IVA é um imposto já bastante experimentado noutros países e é reconhecido como bastante eficaz e eficiente. Em Angola, em particular, terá a grande virtude ou o grande benefício de poder contribuir para aumentar a receita do sector não-petrolífero, que é muito baixa.
Haverá outras vantagens?
Angola tem uma vantagem por ser um dos últimos países a implementar este imposto, porque vai poder aproveitar a experiência dos seus parceiros e pode evitar alguns erros de implementação que foram cometidos noutros países. Mas há alguns aspectos particulares da economia angolana, algumas características únicas. Há um peso bastante elevado do sector informal que fica de fora da tributação do Estado.
E isso não constitui um problema?
Ainda há algum. Há falta de familiaridade da generalidade dos agentes quanto a este tipo de imposto. São desafios grandes. Aquilo que está previsto é uma implementação faseada. Vai ser inicialmente implementado ou vão estar abrangidos os grandes contribuintes, que são talvez aqueles que, do ponto de vista teórico, estão mais preparados. E depois progressivamente, no espaço de dois anos, será alargado aos restantes contribuintes. Há aqui um prazo relativamente alargado até que o imposto esteja implementado na sua plenitude.
Os bancos e as ‘big four’ fizeram troca de argumentos no que toca à hiperinflação. Qual era a situação de Angola no ano passado?
Como em muitas outras áreas da contabilidade e da auditoria, existem algumas áreas de julgamento. Aqui existem, no fundo, regras de contabilidade, algumas das quais de interpretação que não deixam muitas margens para julgamento. Outras não. Esta matéria da hiperinflação, no caso de Angola, no ano passado, talvez estivesse sujeita a um grau de julgamento elevado. Porque aquilo que acontece e o que definem as normas é um conjunto de critérios que permitem concluir se o país está ou não numa situação de hiperinflação.
Que critérios são esses?
Não é apenas um elemento, são vários, alguns dos quais quantitativos e facilmente calculáveis. Um dos quais, por exemplo, era a taxa acumulada de inflação dos últimos três anos. Esse é um indicador objectivo. Mas depois existem outros, mais três ou quatro, que têm algum grau de subjectividade.
Qual foi a vossa posição?
Analisámos os argumentos e tivemos também em conta, na nossa própria análise, que é feita ao nível das ‘mediafirms’ não só pelas ‘big four’. Houve mais firmas de auditorias envolvidas. E feita também em termos internacionais e não só para Angola. Todos os anos, os comités técnicos das várias empresas reúnem-se e fazem esse ‘assessment’, a avaliação para vários países. Não foi um exercício feito exclusivamente para Angola. Obviamente que são tidos em conta os critérios objectivos e esses são fáceis de calcular. Aos mais subjectivos, naturalmente cada firma discutiu e apresentou argumentos. Foram incorporados esses elementos e a opinião da banca. Houve consenso entre as firmas de auditorias que estariam verificados os critérios para se considerar Angola uma economia hiperinflacionária. Um dos factores que pesou nessa decisão era a perspectiva futura, a taxa de inflação que se antecipava para o ano seguinte e que parecia corroborar a tese de que a inflação acumulada nos últimos três anos seria mais do que 100% e que estariam cumpridos outros requisitos.
Ainda assim, os bancos não aceitaram. Que mensagens os bancos passam aos mercados?
Não sei necessariamente responder. Há aqui uma diferença de opinião.
Os bancos não consideram haver hiperinflação?
Isso não consigo responder. Houve um entendimento diferente em relação aos critérios que definem se uma economia é hiperinflacionária ou não. Provavelmente, os bancos entenderam que alguns deles não estariam cumpridos e, portanto, não entenderam como sendo necessário fazer ajustamentos que as normas impõem.
Os auditores quase sempre colocam reservas nos balanços dos bancos. Qual é a qualidade da informação neste sector?
Não especificando o caso da banca, podemos falar também do sector público e das indústrias privadas. Em geral, há uma questão de governação, que, aliás, também é referida pelo próprio FMI como um dos desafios ultrapassar. É fácil entender que, para um investidor, não será muito confortável investir, se não houver transparência, se não houver contas produzidas com fiabilidade. É muito importante que as organizações e as empresas apresentem as contas periodicamente, sem reservas, porque é com base nelas que os investidores tomam decisões.
Qual é o impacto de uma reserva nas contas?
O facto de haver uma entidade com um relatório do auditor com reservas é normalmente um sinal negativo, deixa algumas reservas ao mercado e aos investidores. Há eventualmente alguns bancos, mas, em geral, o sector empresarial, privado e público, ainda tem de melhorar nesse aspecto.
Sobre onde deve incidir essa melhoria?
A governação e o processo de reporte financeiro, de apresentação e prestação de contas no fim do dia. O sector financeiro é o mais delicado, porque é a base e quase o coração da economia. Tem uma particularidade que é o risco sistémico. Havendo um problema num banco, dependendo da sua dimensão, este risco pode espalhar-se aos restantes bancos e à própria economia. E, por isso mesmo, é talvez um sector onde existe mais regulação, porque requer mais atenção. Porque tem maior risco de contagiar a economia.
Como a banca pode ultrapassar o desafio da governação?
Não há uma fórmula mágica. A governação tem várias componentes. Existe bastante legislação e regulamentação e o supervisor, o Banco Nacional de Angola, tem vindo também, mesmo ao longo dos últimos dois anos, a produzir diversa regulamentação para promover uma melhoria da governação. Temos assistido, no último ano, a um exercício da supervisão mais activa, procurando de uma forma mais próxima acompanhar os bancos e mais proactiva obter respostas. Esse é o caminho. Uma supervisão mais activa, mais vigorosa que garanta que as leis e regulamentos sejam cumpridos e que os bancos tenham uma governação mais adequada.
Quais os desafios da auditoria em Angola?
Daquilo que é a nossa experiência na PwC, aquilo que fazemos em auditoria em Angola não é diferente do que fazemos em qualquer outro país. Seguimos as regras, as nossas auditorias são feitas com mesmos padrões internacionais. Desafios existem como em qualquer outra empresa ou sector. Tem os desafios de se operar em Angola, que nem sempre é fácil, seja pela infra-estrutura que, se calhar, não é tão boa como noutros países.
Como a define?
Coisas tão simples como comunicações, por exemplo, ou a energia. Dificilmente, num escritório em Nova Iorque, há uma falha de luz ou de comunicação. Estou a falar deste tipo de desafios. Há um outro desafio que grande parte das empresas continua a ter: a atracção e retenção de quadros qualificados. As auditoras sofrem um pouco mais do que a maior parte das indústrias, porque o investimento que fazemos, na formação, é reconhecido no mercado, é muito atractivo recrutar quadros e profissionais das auditoras e nós sofremos bastante.
Repatriamento difícil
O repatriamento de capitais será um processo fácil?
Sinceramente, não sei. Imagino que não. Parece óbvio que não será um processo fácil. Existe alguma expectativa em ver como é que o processo vai avançar. Mas também, se calhar, algum cepticimo quanto à capacidade ou possibilidade de ser eficaz. Está tudo expectante para ver quando terminar o prazo e se, de facto, a eficácia do processo foi ou não conseguida.
Onde está o receio?
Dada a natureza e circunstâncias deste processo, não é fácil, por um lado, porque envolve jurisdições diferentes. Isso é logo um problema bastante difícil de resolver. O Executivo está a tentar obter a cooperação e a coordenação com outras jurisdições, mas a experiência noutros países mostra que não é um processo fácil e que se pode arrastar no tempo. Além das questões de jurisdição, regras e leis diferentes, há prova que tem de ser feita.
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