César Silveira

César Silveira

Editor Executivo do Valor Económico

DIVISAS. Gigante asiático pretende aproveitar a influência que tem no mercado petrolífero para impor a sua moeda e Angola está na agenda como país de ensaio. Especialistas entendem que pode ser positivo, desde que as negociações sejam bem-feitas.

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O plano da China de aproveitar a condição de influente comprador mundial de petróleo para promover a internacionalização do yuan apresenta-se como um grande desafio para Angola, devido à forte possibilidade de reduzir a importância do dólar no sistema financeiro nacional.

As informações da existência do plano chinês foram postas a circular, na última semana de Março, por diversos órgãos internacionais com recurso a fontes não identificadas, mas não confirmadas nem desmentidas pelos diversos organismos chineses.

É consensual entre os especialistas de que existe, efectivamente, este plano. E justificam-no, sobretudo, com a abertura da Shangai International Energy Exchange (SIEEX), unidade da bolsa de Shangai Futures Exchange que vai permitir negociar contratos de petróleo em yuan.

O investigador do Centro de Investigação da Universidade Católica José Oliveira entende que o crescimento desta unidade estará dependente da aceitação, por parte dos maiores vendedores. “Um dos factores que vai influenciar o crescimento desta nova bolsa de negociação de petróleo na China com base em contratos de futuros vai ser a aceitação, por alguns países grandes exportadores como a Arábia Saudita, Rússia, Angola, Irão, Iraque etc, de alguns pagamentos em moeda nacional, o yuan. Se tal não acontecer, a nova bolsa não vai crescer muito nos primeiros tempos”, respondeu a convite do VALOR para analisar os riscos e vantagens para Angola da possível substituição do dólar pelo yuan.

Informações divulgadas pela imprensa internacional dão conta da intenção da China de iniciar o uso o yuan ainda este ano e, numa primeira fase, com as compras nos dois maiores vendedores, ou seja, Angola e Rússia.

José Oliveira entende que a introdução do yuan nas compras de Angola “tanto pode ser negativa como positiva”, dependendo da habilidade nas negociações. “É positivo se apenas englobar as exportações de petróleo destinadas ao pagamento da dívida de Angola, fruto dos financiamentos da China. Mas, para que tal aconteça, e de forma neutra – sem prejuízos para ambas as partes –, é necessário que as entidades financeiras dos dois países negoceiem para, primeiro, converter a dívida à China, ou parte dela, de dólares para yuans”, argumenta José Oliveira.

Para o especialista em questões energéticas ,“o que Angola não deve, para já, permitir, enquanto o yuan não for uma moeda internacional e convertível, é que as exportações de petróleo que agora lhe são pagas em dólares, e que o país usa no comércio internacional passem a ser pagas na moeda chinesa”.

“Os chineses estão, de forma lenta, a internacionalizar a sua moeda, mas ainda há muito caminho para andar nos próximos anos para que ela possa ser aceite nos pagamentos internacionais como acontece com o dólar, euro, yen ou franco suíço, a não ser nos casos em que o montante recebido se destine a amortizar divida à China”, acrescenta.

Por sua vez, o economista Cristóvão Neto entende que “assim, à primeira vista, é positivo para Angola”, devido à escassez de divisas das economias petrolíferas. “Também é uma tendência antiga da economia mundial, a pluralidade das moedas. Ou seja, o mercado das moedas torna-se mais plural e o dólar e as outras deixem de ser as únicas moedas fortes. Pelo volume de comércio que proporciona, a moeda chinesa vai tender a ser aceite na maior parte das economias”, argumenta.

A possibilidade de o plano chinês concorrer para reduzir o dólar no sistema financeiro deve-se ao facto de o petróleo representar mais de 90% das exportações angolanas e a China ser o maior destino do petróleo angolano. Em 2016, por exemplo, segundo o relatório e contas da Sonangol, a China adquiriu 48% das exportações. Ainda em 2016, o gigante asiático pagou cerca de 13,7 mil milhões de dólares pelo petróleo angolano, segundo a Administração Geral de Alfândega da China que dá conta ainda de que, em 2017, a China pagou 19,4 mil milhões de dólares.

Assume que nunca usou a condição de filha do actual presidente do Parlamento para ter sucesso. Como empresária, lança dúvidas sobre os benefícios para Angola da Zona de Comércio Livre, critica os bancos “por sufocarem” os empresários, acredita que a crise é passageira e apoia o combate à corrupção, apesar de lançar dúvidas sobre o sucesso da empreitada.

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O combate à corrupção é uma das bandeiras do Governo. Acredita no seu êxito?

A corrupção combate-se com melhor educação e a responsabilização dos agentes públicos e não só. Sem medidas criminais exemplares, fica muito difícil de acreditar. Mas, só de existir esta manifestação clara do novo Governo, já é uma verdadeira conquista.

Concorda com quem pensa que o fim da corrupção e outras práticas semelhantes representam a falência de grupos empresariais cujo sucesso sempre esteve dependente destas práticas?

Não. Haverá uma organização. Todas as grandes riquezas mundiais vieram de situações que se acreditam ilícitas. Angola não iria fugir a este paradigma. Agora, não pode ser regra. Os conflitos armados mexem com a organização do Estado. A estabilidade política impõe regras claras e justas, onde a riqueza assente no rendimento justo é obrigatória para todos.

A nova lei do investimento estrangeiro acaba com a obrigatoriedade da parceria com nacionais. Concorda?

Alteramos tantos procedimentos legais. Nunca percebi, sinceramente, o seu propósito. Uma lei que impunha as parcerias estrangeiras aos empresários nacionais, humildemente falando, tem, na sua génese, um cariz proteccionista. Ao retirar-se esta obrigatoriedade, abre-se a liberdade às iniciativas estrangeiras que gozam de toda a protecção dos seus estados para a procura de novos mercados e esquecemo-nos de capacitar os nacionais. Precisamos de cair no realismo político, social e económico de outro modo. Caminhamos para um monopólio estrangeiro, já existente, só que agora liberalizado e legalizado pelo nosso Estado de direito e democrático.

Mas muitos empresários angolanos também defendiam o fim desta obrigatoriedade. Como explica esta posição?

São as ambiguidades tipicamente angolanas. De certeza que são os angolanos com dupla nacionalidade ou duplo interesse. Muito mais virados para o mercado estrangeiro do que para o nacional. Grande parte dos empresários nacionais, se tem capacidade financeira, não tem a tecnológica e, para criar maior dificuldade, a nossa banca de investimento ainda não está tão consolidada de modo a criar-se um proteccionismo aos empresários nacionais sem injecção de capital financeiro estatal. Ou seja, a nossa ‘garantia real’ ainda é o tão sonhado negócio bilionário com o Estado que, na prática, já não existe. Quem se fez rico! Optimo! Quem não se fez, vira servente! Só podemos depreender isso. Vamos caracterizar estas posições de os ‘chamados interesses instaurados’.

Quando fala em possível monopólio estrangeiro está também a dizer que a Zona de Comércio Livre pode ser mau para o empresariado nacional?

Sinceramente, só posso considerar que sim. Porque, dentro das políticas macroeconómicas que foram traçadas ao longo dos anos pelo nosso executivo, permitiria um início de processo na Zona de Comércio Livre certamente competitiva com as necessárias adaptações! Os nossos ditos empresários, os chamados fortes, só apostaram em negócios transaccionáveis e nada produtivos para o nosso PIB. Há uma certa relatividade no que a Elizabete diz? Não. Há realismo. Mostrem-me uma indústria nacional forte! Autónoma! Em que os seus custos de produção só dependam dos factores produtivos internos! O que se espera de nós, na Zona de Comércio Livre? Se nem a nossa moeda nacional é capaz de nos segurar e estruturar... Só um milagre.

Tem tido contactos com potenciais parceiros estrangeiros. Quais têm sido as maiores preocupações que apresentam?

O repatriamento dos capitais investidos. Temos de ser flexíveis. Quem investe no nosso país está a contribuir para a construção de um património económico e social. Agora é bem verdade que o valor investido só deve sair depois da devida maturidade do negócio e formação contínua dos quadros nacionais.

“A crise é temporária”

Como tem estado a gerir a dificuldade de importação de matérias-primas?

Essa questão é estrutural, é uma questão de Estado. Primeiro, não podemos brincar aos empresários, temos de nos preparar para tudo, para os bons e maus momentos, sermos empresários de verdade. Hoje, os problemas estão aí, temos de os enfrentar, procurar soluções. As empresas que estão bem estruturadas vão sobreviver. A crise é temporária e é um teste para filtrar quem realmente é empresário. Estamos a viver também a problemática da escassez de divisas, mas temos parcerias estratégicas lá fora que ainda nos alimentam.

Não tem dificuldades?

Temos fornecedores que, mesmo sem divisas, dão os produtos e, na medida que vamos conseguindo, liquidamos as dívidas. Dentro dos próximos tempos, com os nossos parceiros, vamos montar uma unidade de fabrico de cartões, por exemplo, ainda este ano. Vamos também produzir internamente o milho e, no âmbito de uma parceria estratégica, vamos montar uma empresa que vai fornecer vacina animal. Há problemas, mas o desejo de vencer é maior.

A fazenda Pérola do Kikuxi mantém a liderança na produção do ovo?

Representamos 60% da quota do mercado. Um dos grandes segredos é a programação da reposição dos bandos.

Qual é a facturação anual da Fazenda Kikuxi?

A facturação anual, com a venda de ovos e galinhas, é de cerca de oito mil milhões de kwanzas.

Com estas dificuldades, haverá necessidade de aumentar o preço do ovo?

Produzir ovo é caro, partindo da importação de matéria-prima, água, energia, enfim, tudo isso influencia no preço final. O preço oficial está agora, fixado em 40 kwanzas. É justo. Agora no mercado informal, ronda os 70 a 100 kwanzas, o que já não se justifica.

Recentemente, disse que estavam com dificuldade de explorar a 100% a Solmar, fábrica de processamento de peixe, que inauguraram recentemente. Este cenário mantém-se?

Ainda não está a funcionar a 100%, devido, sobretudo, à escassez da principal matéria-prima, o peixe.

Qual é o problema, visto que o país tem mar suficiente?

Falta um plano concreto para o devido desenvolvimento das indústrias locais, sem recorrer às importações dos insumos. O processo industrial é uma integração. Nunca pode ser visto como objectivo separado, individualista, sem comprometimento com as políticas do executivo.

Como pensa inverter o quadro?

Continuar a trabalhar na busca por melhores soluções. Só paro, se o país parar e penso que tal não vai ocorrer.

Esta dificuldade pode ser entendida como resultante de alguma falha na elaboração do estudo de viabilidade?

Esta falha deve-se a um único propósito, a não organização das principais estruturas que asseguram a nossa actividade. Não há nenhum estudo de viabilidade que funcione, caso as instituições não coloquem as mãos nos agentes económicos que agem de má-fé. Muitas licenças atribuídas beneficiam o mercado informal.

Vai conseguir honrar o compromisso com a banca?

É uma questão de honra. Vamos, não tenho qualquer dúvida disso.

“A banca sufoca”

Que avaliação faz da banca?

Devia ajudar os empresários em vez de os sufocar. Em muitos casos, exigem garantias que quem está a começar não tem. É um debate que deve ser levantado, tem de se rever alguma coisa de modo a viabilizar os projectos.

Os bancos acusam os empresários de apresentar projectos pouco convincentes. Para que lado pende a verdade?

Sem uma banca realmente vocacionada para a banca de desenvolvimento, nunca saberemos. Existem erros de ambos os lados, o certo é que, quem perde é o nosso país.

Tem alguma facilidade em aceder ao crédito bancário por ser quem é?

Se assim fosse, já estava na lista das mais ricas, pelo menos, de África. Não faço uso das prorrogativas políticas e quando tentaram colocar-me nesta condição, retirei-me educadamente. Busco uma postura muito natural. Falando educadamente com quem decide e defendendo aquilo que acredito e os projectos que tenho em carteira.

“Conto com o apoio de homens”

É fácil gerir homens?

O mais complicado não é gerir homens, mas gerir pessoas. Gerir pessoas é muito complicado. Mas hoje, o angolano já não olha para o sexo, mas para a competência e para os planos em que todos se revejam. Conto com o apoio de muitos homens. As políticas não são femininas, mas de todos.

Quais são as principais características, virtudes e defeitos, dos trabalhadores angolanos?

Sentido de responsabilidade, pontualidade e pressa em ascender sem aprender, na prática, que o sucesso se alcança com trabalho, paciência e humildade. Embora seja uma postura de poucos, quando focados nos seus objectivos, são uma verdadeira mina de ouro. São os chamados ‘diamantes brutos’, que podem ser tão bons como os demais no resto do mundo. Só que, lá fora, é uma regra básica e, em Angola, uma raridade.

Na generalidade, o gestor angolano põe em prática o princípio, segundo o qual ‘o principal recurso das empresas são as pessoas’?

Quem não procede desta forma está a lançar-se sozinho para o abismo. Ainda há muitas injustiças no mercado de trabalho. No entanto, há novas formas de actuação dos gestores angolanos, muito assentes no concidadão. Muito se deve também a um posicionamento melhorado do perfil do trabalhador.

Há quem diga que as mulheres, quando assumem cargos de direcção, se tornam prepotentes. Concorda?

Acho que não. Há características próprias dos homens e há características comuns das mulheres. A mulher, por natureza, reage de forma emocional, mas não é por prepotência. Eu tenho o cuidado de tomar decisões sem olhar para as características, se são masculinas ou femininas.

Que avaliação faz da presença de mulheres na agro-indústria?

Ainda são poucas e com uma forma de trabalhar tradicional. Temos ajudado essas pessoas no sentido de evoluírem, virarem para as grandes indústrias. As mulheres não devem olhar para o género como obstáculo. Devem, primeiro, saber o que querem fazer, unirem-se com as boas pessoas, porque este sector ainda precisa de mais mulheres.

Que análise faz do empresariado nacional?

Embora muito competitivo, é muito individualista, não persegue os interesses comuns, infelizmente.

Apesar de ser filha de quem é, é muito crítica pela forma como é tratado o sector empresarial. Porquê?

Nunca tinha prestado atenção. Quem vive os problemas e sente deve manifestar-se. Não sei se as pessoas que privam comigo na condição de empresária me vêem como filha de… Busco demarcar-me e só falo na condição de empresária.

Pensa um dia deixar o mundo empresarial para abraçar outra carreira?

Vivo um dia de cada vez. Sem deixar de me capacitar para novos rumos ou desafios. Qualquer novo objectivo, que me retire da vida empresarial, terá de ter uma correlação com todo o meu trabalho reconhecido. Ainda tenho algum tempo por estas áreas, sempre inovando.

A política é uma possibilidade?

Dos maiores orgulhos que sinto do meu pai, certamente, é pela sua carreira política. Todo o pai quer ver um dos filhos a seguir o seu trilho. Há pessoas que privam connosco e perguntam o porquê do meu pai não me lançar no mundo político. O meu pai responde com o silêncio e eu com um sorriso. Ser uma hipotética seguidora do meu pai não é tarefa fácil. Se acontecer, será muito natural, sem cunhas, não é essa a nossa postura. As pessoas não são só importantes fazendo política activa. Se calhar, o meu trabalho junto das mulheres zungueiras é mais impactante do que qualquer acomodação. Por enquanto, estou realizada nesta condição de empresária.

É a favor ou contra as quotas de mulheres para cargos de direcção e chefia?

Não partilho essa ideia. Homem ou mulher, desde que tenha força e capacidade, não precisa de quota. É uma medida discriminatória, que dá a aparente imagem de equidade e, na verdade, não tem impacto. As oportunidades deveriam ser iguais e homens e mulheres a concorrerem em igualdade de oportunidades. Quem é capaz não depende de quotas. Nós, mulheres, já provámos que somos capazes.

Quais são as conquistas que as angolanas já alcançaram para provarem que são capazes?

Tantas. Pena que os homens só mencionem aquelas que sejam necessárias por conveniência. Pegue na história das mães dos grandes homens do nosso país e depois diga-me se o mérito é dos pais ou das mães.

Está satisfeita com a representação feminina nos cargos de chefias nas diferentes áreas?

Não. Há muita mulher que, com oportunidade, faria mais e melhor, comparativamente a muitos homens que estão em lugares de acomodação sem apresentar resultados.

Quais são hoje os grandes desafios da mulher angolana?

Provar, de forma sistemática, que é capaz.

Como caracteriza a mulher angolana no geral?

Guerreira, astuta, perspicaz, com sentido de dever e obrigação muito raro. A nossa sociedade só ainda não percebeu que grande parte dos grandes homens, ‘senhores doutores’, foi educada por viúvas, mães solteiras, que foram atiradas com os seus filhos para um cruel abandono.

“Quis sempre ter poder de decisão”

É jurista, mas destaca-se no mundo empresarial onde já venceu um prémio. Qual é o seu segredo?

De facto, no ano passado, venci o prémio Sirius na categoria de empreendedora do ano. Foi e continua a ser uma surpresa e uma honra porque não esperava. Trabalho por objectivos e não por prémios, mas, quando o reconhecimento chega, é um orgulho. Quando decidi abraçar o mundo do empreendedorismo, fi-lo por perseguir um objectivo de realização e não por prémios. Mas, quando chega de modo natural, é um orgulho. Sempre defendi, desde criança, que as mulheres podem ser aquilo que elas quiserem, dentro da capacidade e fragilidade de cada uma. Não é uma questão de género, mas sim de mentalidade e determinação daquilo que cada uma das mulheres quer buscar para si.

Em que circunstâncias se tornou empresária?

Estudei no Nzinga Mbandi. Outras meninas sonhavam ser médicas, aeromoças e eu sempre disse que seria uma empresária de sucesso. Quis sempre estar num espaço de euforia e de poder de decisão. Foi um sonho, mas, até à concretização, tive de trabalhar muito.

Qual foi o primeiro projecto que geriu?

Muito cedo, em 2006, estava em Portugal a estudar e criei, em Angola, uma empresa de eventos, a Kee-Eventos. Na altura, pedi autorização ao meu pai [Fernando da Piedade Dias dos Santos, actual presidente da Assembleia Nacional], mas ele disse-me para esquecer e que, se avançasse, seria por conta própria. Avancei, mas depois retirei-me da sociedade porque faltou coerência e transparência da parte dos sócios. O projecto perdeu a essência. Sai com a minha dignidade, pedindo apenas que se salvaguardasse os empregos dos funcionários.

Teve alguma inspiração familiar?

Não. Por incrível que pareça, e perante a minha insistência, só uma pessoa arriscou em acreditar nesta possibilidade. A minha mãe, já falecida, foi uma jovem militar e, naquela altura, não tive ninguém da família que fosse empresário, até porque o sistema empresarial angolano é jovem. A ideia era trabalhar num sector que me motivasse sempre e o mundo empresarial era um deles.

Hoje ainda nota esta falta de coerência nas sociedades?

Muita. Há luta por dinheiro e falta de transparência. No meu caso, quando me deparo com estas lutas, prefiro lutar pela minha dignidade. Luto pela justiça, nunca por dinheiro. O dinheiro é o resultado de trabalho e persistência.

É acusada de beneficiar da influência do seu pai?

Qualquer um de nós tem um pai e uma mãe, carpinteiro, pedreiro, etc. Eu sei qual é a intenção da pergunta. Sou sim filha do senhor Fernando da Piedade Dias dos Santos (‘Nandó’), mas sempre procurei não associar a imagem política do meu pai aos projectos empresariais, embora ele seja um observador atento do que faço.

Incomoda-a as opiniões de que o seu sucesso empresarial se deve, essencialmente, ao estatuto político e social do seu pai?

Sinceramente, não. As pessoas têm direito de emitir a sua opinião sem desmerecer, naturalmente, o respeito e a dignidade dos outros. Desde que esteja consciente das minhas obrigações e dos meus defeitos...

Quantas empresas gere actualmente?

Tenho como empresa principal a Deside, da qual sou accionista e administradora. A mesma, neste momento, tem um universo de 32 empresas, entre as quais a Fazenda Pérola do Kikuxi, a Avikuve, a Kikovo, a Nutrimix, a Palma, a Solmar e alguns projectos que vão surgir, brevemente. Umas já estão a funcionar, mas sem apresentação pública. No total, criamos cerca de mil empregos directos.

Líder de uma das províncias pesqueiras do país lança o desafio aos produtores de sal a serem mais agressivos sob pena de perderem as licenças. Também promete ser implacável com os colaboradores que não estiverem alinhados com o combate à corrupção. O governador aposta na iniciativa privada para desenvolver o turismo, as pescas e as energias. Defende ainda uma maior descentralização para os municípios.

Carlos da Rocha CruzGovernador do Namibe201803155503 1

Foi vice-governador antes de ser governador. Significa que teve uma adaptação fácil?

Sim, porquanto a nossa província é pequena, se considerarmos a nossa demografia com 500 mil habitantes, cerca de 65% concentrada na cidade facilmente nos podemos enquadrar com o que encontramos. Vamos dar sequência ao programa deixado pelo governador Rui Falcão e ir actualizando de acordo com o programa de investimento público e o Orçamento Geral do Estado. Pretendemos atrair investidores privados, quer nacionais como estrangeiros, para o Namibe dar o salto que pretendemos, visto que temos muitas potencialidades virgens.

Ainda não está satisfeito com o nível actual de investimento privado na província?

Não, porque o Governo chegou onde tinha de chegar e a situação não está muito boa para ser o Governo a preocupar-se com outros sectores. O Presidente da República chama a atenção para actuarmos neste sentido. Mesmo na diplomacia, está a dar-se prioridade à diplomacia económica para atrair investimentos. Alguns sectores estão a começar a ser explorados, mas não na plenitude. É o caso do turismo. Com operadores experientes, podemos encontrar fortes potencialidades, considerando as áreas por explorar como é o próprio mar e o deserto. O turismo que é feito, mesmo o doméstico, é insipiente e é feito de uma forma não estruturada. Queremos operadores que de A a Z encontram potencialidades que possam transformar o Namibe, como alguém disse por altura das campanhas eleitorais, na terceira capital do país, mas sempre com o enfoque no turismo.

E o que está a ser feito para incentivar estes investimentos?

Estamos a trabalhar com o Ministério da Hotelaria e Turismo para que, de uma forma mais organizada, se vá buscar pessoas com experiência e nós, no terreno, vermos o que temos. Há potencialidades, por exemplo, para os desportos radicais e marítimos. No deserto, há muito por se explorar a partir do Parque Nacional do Yona. Há muita coisa por se fazer. Não queremos mais um turismo feito por curiosos, mas sim com operadores que nos permitam sonhar com a possibilidade de fazermos com que, invés das pescas, o nosso cartão postal possa ser o turismo.

Para que outros sectores olham com a mesma expetativa?

Temos as rochas ornamentais. Pretendemos incentivar a transformação local porque perdemos muito quando só exportamos. Se podermos trabalhar no sentido de termos o produto acabado e semi-acabado, já será uma mais-valia, sobretudo porque fica mais cara a importação dos produtos acabados. Ao importarmos os produtos acabados, pagamos até oito vezes mais e é nesse sentido que estamos a trabalhar. Há empresas que já estão a exportar, só que tem de se fazer mais marketing sobre o que se produz e pretendemos que surjam mais fábricas de polimento de rochas ornamentais porque o potencial no Namibe é muito forte. Muito do granito que aparece na Europa tem como origem o Namibe. Vamos chamar as pessoas para investirem em fábricas porque matéria-prima não vai faltar. Vai exigir, sim, mais investimentos, a montante, ou seja na exploração.

Enquanto isso, as pescas continuam a ser o cartão postal da província...

Houve um período em que estavam num estado bem moribundo, mas já demos um salto muito grande. Assistimos a uma melhoria satisfatória com a entrada em funcionamento de novas unidades pesqueiras o que permitiu gerar quatro mil postos de trabalhos. Continuamos a trabalhar no sentido de criar condições objectivas que garantam o surgimento de novas empresas no município do Tômbwa, onde, brevemente, vamos inaugurar um entreposto e posto pesqueiro com capacidade de atracagem e descarga, ao mesmo tempo, de vários barcos de longo curso. Estamos a trabalhar para recuperar o sector salineiro de forma a aumentar os níveis de produção, baixar os custos de produção e melhorar a qualidade do produto e integrar a rede nacional de distribuição. Assim, resolveríamos o problema de escoamento do produto. Estão a surgir novas empresas que, aliadas à nossa coqueluche do momento, a Academia de Pescas e Ciências do Mar, representarão um salto considerável nas pescas.

Em relação ao sal, os produtores nacionais queixam-se da importação por excesso. Enquanto governador de uma província salineira como pensa atender a estas preocupações?

Nós ainda somos deficitários na produção do sal para o consumo interno. No Namibe, particularmente em Moçâmedes, temos três salineiras, mas a funcionar em pleno temos duas. Há espaço e áreas suficientes para que o Namibe possa ultrapassar Benguela na produção. Vamos chamar a atenção aos empresários que estão com estes terrenos porque os investimentos na indústria não são grandes. É, essencialmente, nas máquinas porque temos o mar, assim como o terreno. Se querem pegar, pegam, senão, vamos chamar quem esteja interessado. Há pessoas que ficaram com os terrenos, não fazem e não deixam fazer, vamos tomar algumas medidas porque o Namibe pode dar um salto bastante grande na produção do sal.

O que pensa em relação à importação do sal?

Têm de ser tomadas algumas medidas a nível superior e isso também em relação a outros produtos, para a defesa da produção nacional. O mesmo serve, por exemplo, para a produção do carapau. Todos os anos, importamos porque a nossa produção ainda não é suficiente, mas isso tem de ser ultrapassado porque temos uma vasta área onde se pode capturar, não apenas estes pelágicos, para satisfazer as necessidades. Temos de encontrar mecanismos com os próprios industriais das pescas. É verdade que houve alturas em que tivemos alguns fenómenos, como o ‘El-Nino’, que influenciaram negativamente na captura, mas as coisas estão a melhorar.

Qual é o actual nível de exploração das salineiras?

Exploram entre 4% a 10%, mas poderiam explorar mais. Um dos problemas que temos é a falta de agressividade por parte do empresariado e uma certa receptividade por parte dos bancos para as solicitações dos empresários. Esse é um dos maiores problemas que temos: os bancos corresponderem às expectativas das empresas.

Quantas licenças estão disponíveis para a exploração do sal?

São poucas, quatro ou cinco, embora haja pedidos para grandes indústrias, mas a área que se está pedir fica um pouco fora da rota em que facilmente se pode produzir e fazer a distribuição. Há solicitações para o Bentiaba. Se realmente estiverem interessados e forem agressivos, a indústria salineira vai dar um grande salto.

Existem perspectivas de mais investimentos industriais para a cadeia da pesca?

O Ministério lança quotas para as capturas em relação à cavala, sardinha e carapau. Em relação ao cacusso, cachucho e corvina têm outro tipo de captura. Somos fortes em relação aos crustáceos, estou a referir-me ao caranguejo que é um dos cartões postais da província, aparecem também os moluscos, lulas e chocos nos períodos próprios, mas, às vezes, não são devidamente aproveitados do ponto de vista comercial e até industrial. Capturam-se grandes quantidades, mas ficam por aí só.

O que está a ser feito para que esta coqueluche, a academia de pescas, não venha a transformar-se num ‘elefante’ abandonado?

Há um grande problema em relação a estas infra-estruturas construídas pelo Estado. Estivemos muito tempo a trabalhar nas pescas, no Tômbwa, e a experiência que obtivemos da indústria pesqueira é a manutenção. Se não for feita, passados um ou três anos, danificam, depois estamos numa área onde a corrosão é muito forte. No Tômbwa, havia um programa de manutenção de todo o processo, até do rolamento. Quando chegasse o momento para a substituição, não se esperava pela avaria. Um programa de manutenção destas infra-estruturas é muito importante. Depois é o trabalho de sensibilização dos utentes que precisam de ter orgulho de estar numa infra-estrutura imponente. Tomara muitas províncias terem aquela infra-estrutura. Felizmente, está no Namibe e vamos trabalhar para se cuidar dela.

Também há preocupação em relação à manutenção da estrada que liga Namibe à Huíla. Como estão a gerir este dossier?

Recentemente, estivemos no Lubango para fazer uma concertação com o governo da Huíla porque a estrada 280 está degradada e grande parte desta degradação parte da circulação dos camiões, que transportam blocos de mármore e granito e, às vezes, ultrapassam as capacidades dos próprios camiões. O que pretendemos é que, existindo o Caminho-de-Ferro de Moçâmedes, se passe a usar esta solução porque é mais barata. Há muitos inconvenientes com o transporte por camiões. Quando caem os blocos ninguém se responsabiliza. Os cruzamentos são estreitos e, em muitos casos, registam-se acidentes. O que pretendemos é que se crie um ponto seco na Huila para o transporte dos blocos do Lubango para o Porto Comercial do Namibe. Depois disso, vai fazer-se uma concertação com os operadores para que passem a usar o porto seco. O mesmo vale para os camiões cisternas que levam o combustível do terminal oceânico de Moçâmedes para a Huíla e o Kuando-Kubango que, ao subir, vão derramando. Ainda haverá muito ruído à volta disso, mas temos de encontrar uma solução.

Acredita do sucesso desta aposta?

A questão não é de sucesso, mas de haver uma compreensão. O Governo está preocupado com a manutenção das estradas que tem provocado muitos acidentes. Vamos colocar duas ou três balanças no percurso e, certamente, muitos camiões irão voltar por excesso de carga.

Mas já existiu uma balança...

Nunca foi utilizada, mas também foi construída num contexto diferente. Teremos de actualizar. Esta semana, o ministro das Obras Públicas estará no Namibe e um dos temas será mesmo a estrada porque também precisa de ser alargada para evitar acidentes.

A crise obriga-nos a outros exercícios para a arrecadação de receitas. E o Namibe como está?

Há um trabalho que a AGT está a levar a cabo para formalizar os negócios. Este é um dos aspectos e, no balanço que se fez, no último trimestre do ano passado, a AGT apresentou bons resultados. O petróleo já era, temos de apostar noutras formas. No nosso caso, são estes sectores que já nos referimos, pescas, rochas ornamentais, turismo quando surgir, e o sector informal. Estamos devidamente organizados para ver se saímos da situação actual.

Como se está a preparar para liderar a luta contra a corrupção no Namibe?

A corrupção é um fenómeno social. Estamos a virar a página da nossa história com a eleição do novo Governo. Desde a independência, passamos por todas as transformações que o país teve do ponto de vista político, económico e social. Se queremos melhorar a nossa situação, temos de combater a corrupção, mas isso vai tocar muito na consciência. Uma questão que é muito importante é a atitude do líder e, em cascata, vai se transmitindo até aos mais baixos. Quem não estiver alinhado terá de sair. Estamos no mesmo diapasão do nosso líder e, na nossa equipa, os quadros também têm de estar alinhados connosco. Quem não estiver vai ter de sair porque não posso fazer esta luta sozinho. Os quadros que me rodeiam têm de saber como penso e o meu pensamento é o do líder do país. Se alguém souber que sou corrupto e tivere coragem, que me aponte. No dia seguinte, peço a minha demissão. Enquanto líder de um território, temos de servir de exemplo. Vai levar o seu tempo, mas temos de mudar. Há províncias mais corruptas do que outras? Isso depende do desenvolvimento de cada província. A massa monetária circul nas grandes cidades. Não posso julgar as outras províncias. Temos de passar a mensagem aos nossos colegas porque quem for apanhado sabemos qual é a atitude que se vai tomar. Da mesma forma, se o titular do poder executivo tiver uma informação de que o governador enfrenta este tipo de situação, já não pode fazer parte da equipa dele.

Na posse dos governadores, o Presidente da República pediu a vossa ajuda para descentralizar o poder. Como tem estado a pôr em prática esta orientação?

Está a decorrer um processo na base do decreto presidencial 208. A província do Namibe tem 19 direcções, mas brevemente terá 12 ou 13 gabinetes. O que estamos a levar a cabo, na preparação dos quadros, é lema: ‘a vida faz-se nos municípios’. Assim que sair o estatuto orgânico desse decreto, os governadores não terão as mesmas responsabilidades porque serão transmitidas para os municípios. Temos de ter coragem de mudar a mentalidade porque o governador, neste momento, centraliza as actividades, mas agora vai passar para os municípios. Estamos a fazer o mesmo em relação aos nossos vice-governadores. Por exemplo, o vice-governador para a área política e social é, praticamente, o governador para esta área. Da mesma forma, ele tem de passar esta autoridade para as direcções que dependem deste pelouro, porque, quando passarmos para outra fase, já nos teremos libertado dessas responsabilidades. Já não teremos o poder concentrado no governador, vai diluir-se até chegar aos municípios e, no fim, às comunas. Isso já na perspectiva das autarquias. Os melhores quadros vão para os municípios porque quem conhece os problemas dos municípios e das ruas são os moradores e os governantes locais.

Quais são os municípios que ficariam de fora caso se optasse pela implementação das autarquias locais?

Há municípios que ainda não estão em condições e temos de ser realistas. Nas autarquias, os municípios têm de autofinanciar-se independentemente das receitas provenientes do Estado e não podemos tapar o sol com a peneira. É melhor não adiantarmos os nomes porque há ruídos de que têm de ser todos os municípios, mas sabemos que nem todos estão preparados porque senão, na primeira fase, será um fiasco. Uns vão desenvolver-se e outros vão regredir porque não terão capacidade de autossustentar os seus programas. Vamos deixar que as coisas aconteçam e na base do gradualismo. Se as situações objectivas e subjectivas, ao nível de todos os municípios, fossem iguais, não teríamos problemas. Moçâmedes tem porto, caminho-de-ferro e aeroporto, mas o Virei não tem. Para chegar lá, ‘é um Deus nos acuda’. O Kamucuio também não tem e são estas situações que temos de ver. O importante é iniciar e ver onde vamos pecar.

Há quem acredite que, na primeira fase, teremos muitos casos de peculato envolvendo autarcas por suposta falta de experiência. Tem o mesmo pensamento?

Não concordo. Já houve uma experiência e deram-se saltos qualitativos. Houve um período em que cada município recebeu cinco milhões de dólares. Alguns geriram bem e quem ficou ambicioso foi para cadeia. A consciência de cada um é que vai determinar como vai gerir estes fundos que são públicos. Muitos, quando nomeados, metem-se a jeito e sabemos o que pode acontecer. O tempo que passamos já é mais que suficiente para as pessoas terem consciência da responsabilidade que têm em relação aos fundos à sua disposição. Tem de se ter confiança e quem não tiver capacidade é melhor não arriscar.

A província também tem muitos problemas de energia. Como pensam resolvê-los?

Estamos a trabalhar com energia fornecida por geradores e houve uma altura que a situação era critica devido à dificuldade de combustível. Esta fase, felizmente, foi ultrapassada. Mas até quando? O Namibe é forte em sol e ventos, de maneira que já chamámos alguns empresários para a construção de uma planta de energia fotovoltaica e outra eólica, sobretudo para o Tômbwa e uma outra planta hibrida. Estamos à espera que nos apareçam os investidores.

CONFLITO. Carlos Saturnino disse que o Estado pretende saber o destino dos carregamentos que serviriam para amortizar as linhas de crédito do Brasil e de Israel e que foram interrompidos pela anterior administração. Isabel dos Santos responde que “não havia carregamentos disponíveis”.

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A ex-PCA da Sonangol, Isabel dos Santos, nega que, durante a sua administração, tenha direccionado para outros fins os carregamentos de petróleo que deveriam ter como destino o Brasil e Israel para honrar o compromisso que o Estado tem com esses países.

O possível destino contrário foi anunciado pelo actual PCA da Sonangol, Carlos Saturnino, na conferência de imprensa da empresa, a 28 de Fevereiro, em que salientava que o Governo pretendia saber o destino desses carregamentos.

“Especulações falsas, pois não havia petróleo disponível e não havia carregamentos para mandar pagar a linha de Israel ou do Brasil”, respondeu Isabel dos Santos ao VALOR, acrescentando que “simplesmente” o Estado e a Sonangol “não tinham carregamentos disponíveis, pois, com o preço de petróleo baixo, têm direito a muito menos carregamentos da concessão/blocos”.

“Os poucos carregamentos que havia não chegavam para pagar todas as linhas de financiamento. De acordo com os contratos de partilha de produção, o Estado e a Sonangol recebem menos petróleo quando o preço está baixo. Ele [Carlos Saturnino] sabe, pois negociou muitos destes contratos nesses termos. Mente. Pois, infelizmente, é o que sabe fazer melhor”, rebate a ex-presidente da petrolífera.

Responder ao Estado

Na conferência de imprensa, Carlos Saturnino anunciou que, desde Novembro de 2017, a Sonangol reactivou a amortização da linha de crédito do Brasil e, desde Dezembro, a de Israel. “Tem já amortizados 65 milhões de dólares da linha de crédito do Brasil e 181 milhões de dólares da linha de crédito de Israel”, adiantou, acrescentando que, no primeiro trimestre de 2018, foram alocados cinco carregamentos para o Brasil e dois para Israel. Sublinhando que “era uma orientação antiga do Estado”, Carlos Saturnino acrescentou que, depois da administração da Sonangol reiniciar os carregamentos, o Estado questionou sobre o destino dado aos anteriores “carregamentos que não foram alocados ao Brasil e a Israel”.

Carlos Saturnino garantiu que se limitou a dizer que essa questão deveria ser feita à anterior administração. “Estamos à procura para responder ao dono da empresa o que se fez.”

O VALOR questionou à petrolífera se já tem a resposta, mas, segundo fonte da empresa, da parte da Sonangol “não há intenção de se pronunciar tão cedo sobre as questões que foram abordadas na conferência de imprensa” e que têm sido rebatidas por Isabel dos Santos, em inúmeras entrevistas e nas redes sociais.

O destino dos carregamentos é apenas um dos muitos factos apresentados pelo PCA da Sonangol, Carlos Saturnino, que têm sido negados e esclarecidos por Isabel dos Santos. Entre outras, a empresária refutou também a acusação de transferência de 38 milhões de dólares depois de exonerada e esclareceu a inclusão dos bancos BFA e Euro BIC, de que é accionista, entre os que passaram a trabalhar com a petrolífera.

Depois da conferência de imprensa, a Procuradoria-Geral da República anunciou a abertura de um inquérito para investigar as acusações feitas pelo PCA da Sonangol.

O desinvestimento na exploração pode levar o país a importar petróleo bruto caso conclua nos prazos que se aventam a construção das refinarias. Este foi um dos pontos-chave da conversa com Horácio Fortunato, líder da associação das empresas geofísicas e de apoio ao sector petrolífero.

GE VE 99

As empresas angolanas de geociências são devidamente solicitadas?

Durante muito tempo, foi utilizado o argumento da redução do preço do barril do petróleo para as companhias, incluindo a Sonangol, reduzirem os orçamentos para os projectos de exploração petrolífera, estudos de geofísica, geologia e de poço, colocando em risco as futuras descobertas de reservatórios e, como consequência, a redução da produção petrolífera. As companhias transferiram os seus centros de geologia e geofísica para as suas sedes, causando o encerramento dos centros de processamento em Angola, o que provocou o desemprego de muitos geocientistas angolanos.

Perante esta realidade, como olha para o futuro destas empresas?

Olhamos com bastante preocupação para o mercado das geociências em geral, por isso sugerimos, oportunamente, ao Ministério dos Recursos Naturais e Petróleos a urgente aplicação do Decreto Legislativo Presidencial 8/13 de 17 de Outubro de 2013. Este documento estabelece as bases gerais e estratégicas para a licitação de blocos petrolíferos em zonas terrestres da Bacia do Kwanza e do Baixo Congo com base numa estratégia de exploração aprovada pelo Governo que iria criar milhares de postos de trabalho a curto prazo. Antes da situação actual, a Sonangol controlava 35 ‘joint-ventures’, empresas com as quais assinava contratos e estas formavam parcerias com as estrangeiras que vinham actuar no país e, nestes termos, foram assinadas boas centenas de contratos, as empresas funcionavam. Entretanto, devido à corrente situação, muitas encerraram.

Mas não é compreensível o desinvestimento na exploração, considerando a baixa do preço do petróleo?

Decorre de uma fraca visão estratégica da situação e do mercado e, se calhar, da falta de experiência. As épocas de crises são os momentos que se devem aproveitar. O nosso país é constituído de 12 bacias sedimentares técnicas, começando pelo Baixo-Congo, temos as Bacias de Cabinda, descendo pelo Kwanza, Benguela, Namibe e ainda temos as bacias de interiores. Cada uma é composta de três camadas sedimentares, sendo a última delas a famosa zona do pré-sal. Se temos estas três camadas para as 12 bacias sedimentares, e porque hoje a única zona em que se produz petróleo é praticamente a Bacia do Congo, onde sai os cerca de 1,6 milhões de barris por dia (mesmo esta não está devidamente posta em desenvolvimento), imagina quanto trabalho temos. Temos cerca de 36 bacias técnicas sedimentares por trabalhar. Para o efeito, o Governo solicitou à Sonangol a apresentação de uma estratégia de exploração petrolífera com a finalidade de aumentar os níveis de produção e isto foi feito com muito sucesso. Esta estratégia informa as bases gerais de licitação de blocos no onshore da Bacia do Kwanza e do Baixo-Congo. Uma estratégia perfeitamente exequível, desde que haja conhecimento dessa matéria. Mas nem todos têm capacidade de aplicar esta estratégia. É um projecto que, nesta fase, asseguraria um certo equilíbrio para o que precisamos. Empregos, conhecimento, formação de parcerias e aportaríamos divisas, porque uma das grandes vantagens da estratégia é a criação de tudo isso a custo zero.

Estamos a falar do processo que previa a licitação de 15 blocos e que, a determinada altura, foi suspenso?

Graças a Deus.

Por ter sido interrompido ou por ter começado?

Por ter sido interrompido e esta foi a melhor obra da administração anterior da Sonangol: ter paralisado o que estava a ser feito. Defende a implementação, mas elogia a suspensão.

Não está a contradizer-se?

Estava a ser feito à margem do que está no documento. A aplicação do que se chamava estratégia nada tinha que ver com a estratégia aprovada, mas passava em nome deste documento. Foi muito bem cancelada, porque os termos de referência que estavam a ser aplicados eram completamente contrários ao que está plasmado no documento. Faltou é aplicarem dentro do espírito do documento.

Quais eram essas diferenças?

O Governo estabeleceu que alguns blocos seriam a risco, teriam de ser licitados às companhias com capacidade financeira de suportar e cinco blocos a própria Sonangol se ocuparia deles para dirimir os riscos, faria a perfuração e, se eventualmente fossem positivos, seriam entregues a empresas nacionais. Este é o espírito, permitir que as empresas angolanas ganhassem alguma capacidade de se desenvolverem.

Estava a ser feito de forma diferente?

Sim. As empresas angolanas estavam a ser obrigadas a pagar um milhão de dólares só para a inscrição.

Quem tem?

Foi este processo que foi cancelado.

Segundo a informação que temos, foi cancelado essencialmente pela baixa do preço do petróleo, visto que o preço de referência usado na altura para o concurso público tinha sido o de 100 dólares, mas parece não concordar... Certo?

É evidente que não. Foi apenas um argumento e de quem não entende. A Sonagol não tem um geocientista na sua administração, o que é gravíssimo. Se não tem alguém que domina esta área, naturalmente que não há a sensibilidade para conduzir os negócios desta área, tão-pouco visão para os grandes problemas. É por esta razão que a Sonangol, por exemplo, não foi capaz de assinar contratos, não os assinou não porque não quis, mas porque precisava de avaliá-los e a avaliação tem uma componente técnica muito pesada, exige um entendimento da componente técnica. A Sonangol precisa de ter, urgentemente, um comité técnico para poder agilizar estes assuntos relacionados com projectos técnicos, porque ela foi transformada numa instituição financeira, abdicou-se completamente do seu ‘core-business’ que é a exploração, produção, o controlo do ‘cost oil’ e, naturalmente, o conteúdo local.

Mas a produção e exploração estão entregues à Sonangol Pesquisa e Produção ou fala num outro prisma?

A Sonangol Pesquisa e Produção é uma operadora, subsidiária de uma empresa que abarca a função concessionária dos blocos. Têm funções completamente destintas. A E.P tem a função de controlar todas as operações petrolíferas e isso significa manter a soberania do país. Não podemos permitir situações como as que acontecem em muitos países africanos, como Gabão, Congo ou Nigéria, em que não são eles quem controla as operações petrolíferas. Concedem, por exemplo, uma área às mesmas companhias que temos em Angola e esperam pelas percentagens. Aqui não, estamos muito melhor porque controlamos as operações petrolíferas, sabemos o potencial do país e conhecemos as reservas.

E qual é a razão do descontentamento?

Por não termos aplicado um documento como a estratégia de exploração que até agora não existe definida e que deveria ser conduzida por técnicos que conhecem o ‘métier’, que consigam discutir com as companhias ao mesmo nível. A Sonangol precisa de estar equipada com técnicos e estruturas suficientemente capazes. Tudo isso passa não só pela capacitação quanto pela sua reformulação.

Mas é consenso que a Sonangol tem estes técnicos?

Hoje, os técnicos que, de algum modo, prestavam algum serviço útil estão acantonados, praticamente sem trabalho por força da quase paralisação das áreas em que eles funcionam. As áreas técnicas, actualmente, respondem perante uma direcção de concessões, que é uma área económica. Os projectos, quando chegam, entram para esta área e vão baixando à medida da conveniência dos seus responsáveis para as áreas que entendem, mas, geralmente, este movimento é deficiente e as áreas de exploração e produção, infelizmente, estão sem o papel que deveriam ter.

Quais são os riscos?

O estágio actual da Sonangol foi um objectivo prosseguido há muito tempo pelas operadoras estrangeiras: colocá-la no patamar em que se encontra hoje, de destruição total.

Com que objectivo?

De fazer com que Angola, através da Sonangol, deixe de controlar os seus recursos.

Mas não são as operadoras que empurraram a Sonangol para a situação que se vive actualmente ou acredita que houve interferência?

Não gostamos de encontrar culpados. O que posso dizer é que o estágio actual da Sonangol foi um objectivo prosseguido durante muitos anos. Primeiro, fazer com que a função concessionária da Sonangol, que deve ser executada e controlada por técnicos, passasse para uma agência nacional de petróleos. Uma agência não teria capacidade para exercer este controlo, deve ser feito por uma empresa técnica como a Sonangol, mas a actual não está em condições. Não vamos dizer que está amorfa, mas ainda vive um clima de destabilização de tal maneira que o seu reerguimento vai levar algum tempo. Destruí-la foi fácil, mas recuperar o tempo perdido significa colocar as suas estruturas a funcionar como eram antes.

Quando é que a Sonangol começou a desmoronar?

De 2012 para cá, porque as pessoas não entenderam a função concessionária da Sonangol, fazendo dela uma empresa financeira. A Sonangol é uma empresa que deveria investir nos momentos mais críticos. Nesta altura que há uma profunda crise económica e financeira, deveria produzir, produzir, produzir e investir massivamente na exploração, porque não é apenas o petróleo que constitui a nossa riqueza, mas sim a descoberta de recursos para o aumento das reservas petrolíferas. Neste momento, o país não tem condições para se endividar. Utilizamos o princípio de linhas de créditos e estas endividam, sobremaneira, o nosso país. Podemos afirmar, sem receio de errar, que as futuras gerações estão altamente comprometidas porque o processo que vai da exploração à produção é uma geração, o que temos hoje é produto do trabalho feito há já muitos anos.

A assinatura do acordo de exploração no bloco 48 não é um bom sinal?

O que acontece é que hoje não há nenhum documento orientador da actividade para o sector petrolífero seguir. Aquilo a que vamos assistindo é que se resolve um caso aqui e outro lá de forma aleatória. A aplicação da estratégia tem retorno imediato.

Imediato como, se precisaríamos de 10 anos para os resultados?

Entre 10 e oito anos, mas tem de começar e nós já vamos bastante atrasados. Imagine o que é que a actividade de exploração é capaz de aportar para o país, levada a todos estes blocos a que me referi? Não tenho dados concretos, mas posso dizer que, quando a aplicação da estratégia iniciou, já havia empresas mobilizadas com mais de 60 milhões de dólares para o país.

Já havia acordos assinados?

O que havia eram parcerias. A nossa associação é angolana, olhamos para o conteúdo local. A nossa função é não de vigiar, mas de cooperar com as empresas multinacionais. Somos pela corrente que defende que as multinacionais, ao virem para o país, não devem apenas fazer aquilo que têm de fazer, mas portar valias, sobretudo, conhecimentos. É neste quadro que já tinham sido mobilizadas companhias que se interessaram neste projectos, porque as empresas angolanas não têm dinheiro, há umas que não têm nem 100 mil dólares. Posso garantir que todas estas companhias já estavam comprometidas. A Total, BP, Exxom, Chevron já tinham pacotes de dados comprados para investirem e mobilizados centenas de milhões de dólares para o arranque. Não digo qual por razões de ética, mas uma empresa já tinha iniciado a aquisição sísmica.

Como a associação olha para o processo de reestruturação do sector?

Vamos acompanhando e considerando que aos novos actores do sector incube definir as linhas pelas quais deve caminhar. Gostaríamos imenso que fôssemos ouvidos, porque ao sector petrolífero se incube a responsabilidade de alavancar a vida de todos os outros. Não lamentamos, mas pensamos que os resultados teriam sido, de longe, melhores do que os que temos.

Parece não concordar com a criação de uma agência nacional de petróleos. Porquê?

Actualmente, não há condições para implementar uma agência nacional de petróleos. O que se deve fazer é transformar a Sonangol de uma instituição financeira para uma concessionária nacional técnica, como foi num passado recente e exercer as três tarefas fundamentais pelas quais foi criada em 1978: aumentar as reservas petrolíferas, controlar os custos operacionais recuperáveis e desenvolver o conteúdo local. Estas tarefas não poderiam ser executadas por uma agência nacional de petróleos.

Não é possível considerar a criação de uma agência com estas valências?

Seria necessário uma componente técnica altamente capacitada ou que a Sonangol se passasse a chamar agência nacional, porque já tem o staff que lhe permite controlar as reservas. Caso contrário, poderíamos considerar quase um crime de lesa pátria a criação de uma agência agora. Não somos contra, mas, neste momento, não há condições.

Mas há a necessidade de acabar com a coabitação entre a actividade de concessionária e a de operadora?

No nosso entender, não há esta acumulação. A Sonangol E.P só desenvolve a actividade concessionária que tem uma componente técnica muito forte. Para exercer o controlo da actividade das operadoras, precisa de fazer-se alguns exercícios, mas não comerciais. A Sonangol Pesquisa e Produção é operadora. O Governo não aceitaria fazer coexistir a função concessionária e operadora ao mesmo tempo.

Mas a Sonangol Pesquisa e Produção é subsidiária da E.P, que é a concessionária. Não vê qualquer conflito?

A Sonangol P&P, perante a E.P, tem o mesmo tratamento das outras operadoras, segue os mesmos requisitos da Total, Chevron ou da B.P, não tem vantagens por ser Sonangol.

Está a dizer que é falsa a preocupação à volta desta suposta coabitação?

São os tais argumentos que, sobretudo as operadoras, apresentam para destruir a Sonangol. Este é o objectivo para que tenham o domínio dos nossos recursos. A associação bate-se para isso não acontecer. Quando os outros sectores produtivos arrancarem plenamente ou derem sinais de vitalidade, tudo bem, a Sonangol até pode desaparecer.

E o que pensa dos negócios que a Sonangol tem fora dos petróleos?

Ela foi para estes sectores, certamente porque houve estratégias que determinaram que assim acontecesse porque a Sonangol era uma instituição muito respeitada, durante muitos anos, até 2012, que começou a perder a sua fortaleza. Se alcançamos a independência política com muitas dificuldades, a afirmação económica mostra-se mais difícil ainda porque há gente que não quer que Angola se afirme economicamente, por isso todos os entraves vão surgir e um deles são os nossos amigos, as operadoras. Estão interessadas que Angola esteja completamente destruída e destruir Angola é destruir a Sonangol.

Por alguma razão acredita mais neste interesse de destruição da Sonangol por parte das companhias internacionais? Não está a ser conspirativo?

Não lhe parece sintomático que, no plano político, se bombardeia Angola e no plano económico também? Já leu as propostas, sem qualquer cabimento, das operadoras? É um atentado à soberania, não pode acontecer. De forma diplomática, passam a ideia de que o país é duro, burocrático e violento do ponto de vista de leis e que é preciso mudar o quadro. Mas o que é necessário para os angolanos não dizem, mas nós sabemos.

O que é?

Grosso modo é que Angola perca o controlo das reservas, que fiquemos de braços cruzados à espera dos subsídios, sem saber das quantidades e qualidade da produção.

Pensa ser o caso do acordo do bloco 48 em que a Total investirá sozinha apesar de a Sonangol ser associada?

Não sabemos. O princípio não é mau de todo, mas precisava de uma cabimentação técnica importante que não tem, mas isso fica para o futuro. O princípio é bom porque o país não gasta dinheiro, mas tomamos conhecimento de como é que eles vão fazer este exercício. É com a perda de controlo dos recursos? Não sabemos como foi discutido tecnicamente. Isso preocupa-nos, precisamos de saber o que é que o país está a perder com isso.

Uma das propostas será esta que foi aprovada em que se aumentam os valores para o limite de decisão das operadoras na contratação de serviços?

Certo. O problema não é aumentar nem diminuir os valores. O que é que o operador vai fazer? Vai pegar um projecto de muitos milhões de dólares que requerem aprovação da Sonangol e repartir em vários subprojectos abaixo de um milhão, vai dividir o projecto em muitas tranches. O problema não passa pelo montante envolvido, mas sim pelo princípio da soberania. Consideramos estas propostas descabidas, é uma tentativa de usurpação da soberania.

Acredita no futuro dos petróleos?

Vai seguir o rumo certo, porque não tem outro caminho. Pergunte a quem quiser, o país petrolífero não tem outro caminho que não seja por via da aprovação do plano estratégico ou uma alternativa, mas que seja estruturada como este documento. O sector vai seguir de uma maneira ou de outra, mas, neste momento, não está como nós gostaríamos, porque já tem condições para seguir adiante.

A associação é dos que aplaudem a construção de mais refinarias e concorda com a forma como está a ser conduzido o processo?

Não somos contra, porque, quantas mais refinarias tivermos, melhor será. Simplesmente para ter uma refinaria a funcionar em pleno precisa-se de petróleo bruto. Precisamos de produzir, o que significa que temos de fazer a exploração massiva para dentro de oito e/ou 10 anos termos petróleo. Tememos que as refinarias venham a ser aqueles gigantes adormecidos ou vamos comprar definitivamente petróleo bruto. Se esta for a opção, não sou a favor, mas que seja. Na opinião da associação, antes de fazermos as refinarias, devemos olhar para a fonte de fornecimento do óleo bruto, o que só é possível com a abertura da actividade de exploração. Temos de começar urgentemente. Não temos outra saída ou vamos entrar na linha da importação do petróleo bruto. Também não é um princípio tão mau até porque há países com refinaria sem petróleo. Mas temos esta necessidade? Temos de alavancar a actividade de exploração ao mesmo tempo que estamos a construir as refinarias, porque, quer uma quer outra, só vão dar resultados práticos dentro de 10 anos em termos de óleo.